sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Depressão


No final de 2010, recebi de um leitor um texto para publicação no Paciência. "Pesado", pensei. Guardei e acabei não postando.
Hoje, relendo os escritos do rapaz, achei um desperdício não tê-lo postado ainda. Você pode conferir outros textos do autor (poesia) no aqui: Se, entretanto, porque, portanto, como...

Obrigado pela contribuição, G. O. Seu blog já está linkado no "Leio e recomendo".

---

Ele abre os olhos. A claridade que entra pela janela fere suas retinas, como se estivesse pacientemente esperando pela oportunidade de ser a primeira a saudá-lo da forma mais agressiva possível. "First blood", ele pensa, enquanto sorri ironicamente -- um sorriso falso, quase imperceptível, de canto de boca. Mais um dia pela frente. Mas antes disso, é preciso sair da cama -- sua algoz e amante. E ela se utiliza de todas as suas artimanhas vis para evitar que isso aconteça.

Relógio. Se acostumando aos poucos à claridade açoitante, ele busca o relógio. O display exibe os números em uma tonalidade de branco fria, indiferente: Um, cinco, dois pontos, três, zero. "Só mais quatro horas para o anoitecer", ele se reconforta. Nos últimos tempos, era no relógio que ele encontrava seu leal companheiro -- o objeto havia se tornado seu derradeiro vínculo com a realidade. Para ele, o tempo parecia passar de forma diferente, ao ponto de tornar-se impossível manter uma noção mínima do passar das horas. Dia e noite, eram as únicas coisas que ele reconhecia. Relógio e calendário -- ele precisava de ambos para sentir-se mais humano. "Tudo passa", imaginava, "até o tempo passa, mesmo que eu não perceba". E a cama continuava a vencê-lo com uma diplomacia impecável.

Motivação. Ele busca na memória qualquer resquício de obrigação que lhe sirva, mesmo que contra a sua vontade, como pretexto para se levantar. O emprego com horário flexível, outrora tão conveniente, é agora mais um de seus tantos antagonistas invisíveis. Não, o trabalho não é o caminho -- e mesmo que fosse, sua concentração seriamente debilitada não o permitiria dedicar-se às suas obrigações profissionais por muito tempo. Um hobby, talvez? Ele se imagina envolvido em inúmeras tarefas que outrora lhe dariam prazer -- a leitura, uma cerveja com amigos, um bom bate-papo, a escrita -- mas nenhuma parece convidativa agora. A cama parece abraçá-lo com garras invísiveis, que agem sobre seu corpo inerte como uma droga paralisante.

"Drogas" -- ele olha contemplativamente para a caixa azul e vermelha que jaz sobre o criado-mudo. "Clomipramina", lê-se no rótulo. Ele pensa se a motivação que procura não estaria ali, ao seu alcance, perdida entre as cartelas do antidepressivo. "Um comprimido por dia, na hora do jantar" -- as palavras da psiquiatra, proferidas uma semana antes, retornam à sua mente como que com o único intuito de desencorajá-lo a recorrer à ajuda química. "Pros diabos", ele pragueja, "não está funcionando, de qualquer forma. Só mais quatro horas e já será hora do jantar e..."

"Quando foi a última vez que comi?" Ele não se recordava. Fazendo um esforço homérico, se lembra do sanduíche ingerido há quarenta e oito horas -- a última vez em que sentiu fome. "A clomipramina vai abrir seu apetite" -- novamente as palavras da sorridente psiquiatra retornam à sua memória. O sorriso apagado retorna ao canto da boca, e ele se recorda das palavras de um velho amigo: "A medicina é uma ciência medieval -- pura tentativa e erro." Se dirigindo para a caixa sobre o criado-mudo, como se ela fosse capaz de ler seus pensamentos, ele balbucia em um sussuro meramente audível: "Erro."

Seu companheiro, por outro lado, trabalha incesantemente. Um, seis, dois pontos, dois, quatro. Ele reúne as energias acumuladas pela longa noite de sono -- como pode sentir-se exausto, mesmo após dormir tanto? -- e se senta na cama. Um suspiro de alívio se segue à pequena vitória. A cama, por sua vez, não se dá por vencida -- e parece gritar para que ele se deite novamente. Um urro hediondo, ele pensa, mas magnético: Basta que ele se deixe cair, basta que ele pare de lutar contra o mundo, e tudo ficará bem. Mas ele sabe que não pode. E de forma nada resoluta, ele arrasta as pernas -- primeiro a esquerda, depois a direita -- e toca os pés no chão. Está de pé.

Enquanto pensa no próximo passo, ele acende um cigarro de cravo -- o primeiro de muitos, naquele dia. A fumaça que escorre para dentro de seus pulmões lhe traz um breve bem estar -- que nem os comprimidos, nem o álcool, nem o descanso parecem ser capazes de produzir sobre aquele corpo e mente abatidos. "Nem sempre foi assim", ele recorda, "nem sempre eu fumei tanto". Ele volta o olhar para o criado mudo, uma teceira vez, e completa mentalmente: "E eu nem sempre precisei de comprimidos. Não até que eles surgissem. Não até que eles me derrubassem."

Eles. Ele evitava de pensar neles, crendo que sua sanidade dependia diretamente de sua capacidade de mantê-los soterrados num canto escuro da memória -- lembranças de um pasado que nunca poderia ter feito parte de sua história. Mas todos os dias eles retornavam, mesmo que por alguns segundos, na forma de fantasmas que se recusavam a ser exorcizados. E embora já tivessem partido há meses, o rastro de destruição deixado nas ruínas do que ele havia sido um dia o impediam de esquecer. Os cacos que ele tentava juntar ainda estavam ali -- lembretes da pilhagem cruel protagonizada por aqueles monstros. E embora ele fosse ávido entusiasta por quebra cabeças, não conseguia se divertir em tentar juntar suas próprias peças. Não conseguia montar uma figura que sequer se aproximasse de um ser humano. Relógio e caledário -- sua humanidade residia em seu relógio e calendário.

Comida. Ele decide que, com ou sem fome, não pode completar três dias consecutivos sem comer qualquer coisa que seja. Olha pela janela e assiste os passantes, alheios à batalha travada diariamente dentro daquele apartamento térreo mínimo. Assiste e os reconhece como ameaças -- o mundo exterior lhe parece particularmente assustador há dias. Mesmo assim, ele decide sair. "Um pouco de normalidade", ele pensa. "Sair, ver gente, comer. Vai me fazer bem." Ele se dirige à porta, gira titubeantemente a chave e sai.

O caminho até o restaurante é longo -- ou lhe parece interminavelmente longo. A claridade e a brisa morna do entardecer o fazem sentir-se deslocado, como se ele não fizesse parte daquele cenário. Mas ele caminha. As vozes dos passantes parecem proferir palavras alienígenas que ele não compreende -- como se tivesse desaprendido seu próprio idioma. Seus olhos voltados ao chão, sempre, como se estivessem procurando alguma coisa -- talvez sua motivação perdida. Mas ele sabia que não a encontraria -- pois sua motivação não havia caído de seu bolso como um molho de chaves, não; havia sido arrebatada de seu íntimo. Arrebatada por eles.

O chacoalhar da cabeça para dissipar aquelas lembranças coincide com a chegada ao restaurante. Ele se decepciona ao sentar-se na mesa, abocanhar o sanduíche e notar que continua sem apetite algum. "Meu corpo está desistindo", ele teme. Mas ele não desiste, não assim fácil: devora, mesmo sem fome, metade do sanduíche. E retorna para casa pelo mesmo caminho, exercendo a cada passada o mesmo esforço, carregando a outra metade do lanche -- que, ele espera, será bem vinda mais tarde. A bituca de mais um cigarro atinge a calçada irregular que ele deixa para trás quando entra finalmente no apartamento, sentindo uma desconfortável sensação de segurança por estar novamente em casa. Ao fechar a porta, ele se depara com sua carrasca irrepudiável: A cama.

As batalhas insignificantes, as lembranças torturantes, as empreitadas corriqueiras -- que para ele se faziam conquistas épicas -- são suficientes para exaurir o resquício de energia que ele precisaria para resistir ao olhar convidativo daquela cama. E ela chama, se insinua, o convida. E ele cede, enfim -- mas não sem antes, em um derradeiro ato de bravura, apertar o play do aparelho de som. A música ecoa através do imóvel e entra por seus ouvidos, reproduzindo um efeito semelhante ao do cigarro de cravo encaixado entre seus dedos. Enquanto Johnny Van Zant canta no rádio, ele se esparrama no colchão -- sentindo como se seu corpo tivesse finalmente encontrado seu lugar no mundo, após tanta procura. A noite cai, e ele rompe a inércia -- somente para esticar o braço e apanhar o comprimido que, ele sabe, não fará a menor diferença para seu estado de espírito. O comprimido desce pelo esôfago, seguido por outra rajada de fumaça doce. Com seu cinzeiro, seu calendário e seu relógio ao lado, ele nota a lua cheia através das barras da janela. E quando finalmente a clomipramina começa a relaxar seus músculos, os sonhos -- ou seriam alucinações? -- começam a se misturar com as palavras que dançam pelo quarto antes de encontrarem seus tímpanos:

"But I'm not home, I'm not lost
Still holdin' on to what I got
Ain't much left
No there's so much that's been stolen
I guess I've lost everything I've had
But I'm not dead, at least not yet
Still alone, still alive, still unbroken"

E ele fecha os olhos.

Autor: G.O. 


5 comentários:

  1. MINHA NOSSA!!! não há outra expressão pra se colocar no inicio deste comentário!
    Acredito que muitos leitores se deparam com uma fase de sua vida ao ler o texto acima e eu sou uma delas. Conforme eu lia o texto, via a minha vida passar por entre as letras, me via na história. Pesado? não, real!
    Muito bom, muito bom mesmo!

    ResponderExcluir
  2. Caraca,forte,denso...triste
    Beijos meus

    ResponderExcluir
  3. Não teve como chegar ao final sem lágrimas nos olhos.
    ...
    Edi

    ResponderExcluir
  4. “A cama parece abraçá-lo com garras invísiveis, que agem sobre seu corpo inerte como uma droga paralisante.” Deus. Ele descreveu explendorosamente o que eu sinto ao tentar me levantar da cama. Às vezes parece que é algo sobre o meu corpo que insiste em me empurrar pra baixo, como se me impedisse de me levantar e fazer o que eu tenho que fazer. Terminei de ler esse texto e eu bem que gostaria de poder escrever dessa forma. Conseguiu descrever algumas poucas horas e fazer delas um texto impressionante. Conseguiu descrever a vida de muitas pessoas. Não abusou da emotividade como outras pessoas fariam ao escrever um texto sobre isso. Terminou de forma simples e direta, e nada melhor do que colocar uma letra de uma música que exemplifique todo o texto. Meus parabéns, eu adorei.

    ResponderExcluir
  5. nossa perfeito...

    realmente não ha como não chorar...

    ResponderExcluir