sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Responsabilidade

Ando quieto. E um sujeito quieto, vocês sabem, não fala. Não fala e não escreve. Não fala, não escreve e não posta em blog. Pelo menos por um tempo, pelo menos sobre os assuntos de sempre. Na verdade, acho difícil rir das desgraças do mundo, ironizar as mazelas da sociedade “muderna”, quando vejo gente brincando com coisa séria e fugindo à responsabilidade dos próprios atos. Quando vejo gente se dando bem às custas dos outros, a crueldade travestida de pureza e a desonestidade disfarçada por citações fora de contexto. Responsabilidades. Hoje, vamos falar sobre responsabilidades.

Uma das minhas maiores ressalvas sobre a raça humana é o fato inquestionável de que todos, inquestionavelmente todos os seus membros erram. Falha de projeto do nosso Criador que, no alto de sua benevolência, divindade e amor tão plenos, deve ter obtido o diploma de engenheiro em algum curso por correspondência desses bem vagabundos. Por outro lado, se fomos feitos sua imagem e semelhança, talvez esteja aí o problema: Somos tão imperfeitos quanto nosso próprio criador.

Mas como todo bom péssimo engenheiro, o Criador é exímio praticante de gambiarras. Nessa área de atuação, quem não sabe fazer direito sabe consertar – pode não ser limpo, pode não ser bonito. Mas funciona. E se funciona, está resolvido. E a maior das gambiarras já inventadas, a primeira, é o senso de responsabilidade – aquele bichinho que fica buzinando em nosso ouvido cada vez que fazemos alguma coisa errada, mesmo antes de nos darmos conta disso. E coisas certas também – pois tudo o que realizamos, certo ou errado, traz conseqüências. E responsabilidade é reconhecer, assumir e lidar com as conseqüências dos nossos atos. E aí é que está o problema: Todos erramos, mas nem todos assumimos a responsabilidade sobre estes erros. Eu sei, eu sei – “aqui se faz, aqui se paga”, diz o otimista – mas é que às vezes eu sinto que Deus não só é péssimo engenheiro e exímio gambiarrista, como também um burocrata de primeira. Às vezes, eu acho que essa tal justiça divina demora demais, perdida em meio à papelada na escrivaninha de algum anjo concursado que passa a eternidade esperando o relógio declarar fim de expediente.

Então o que é que eu estou dizendo? Pode errar, pode se enganar? Pode. Mas só se você assumir o erro aprender com ele. Oras, quem sou eu para negar perdão a quem pede? Eu erro. Mas erro e assumo. Erro, assumo e aprendo – e peço perdão na esperança de fazer melhor da próxima vez. E acredito que com isso, me separo dos outros bichos. Acredito que é isso que me separa dos monstros.

O maior problema da responsabilidade, a meu ver, é quando ela se faz necessária nas mãos de uma criança. Pior, daquelas crianças mimadas, que se acham as donas do mundo, que se acham adultas. Crianças não são responsáveis, e para isso existem pais. E é quando um adulto age inconsequentemente, feito uma criança mimada, que os maiores estragos são sofridos – porque não existe um pai ali para lhe dedicar as merecidas palmadas e ensinar que aquilo, o que quer que seja, não se faz. E muitas vezes, muitas vezes mesmo, o que alguém faz é algo que não se faz. Aliás, aproveito para rever uma tese: Deus é péssimo engenheiro e péssimo gambiarrista. Porque se os seres humanos se apresentassem ao mundo equipados de uma bomba interna, detonada à menor tentativa de se fazer o que não se faz, aí sim. Isso sim seria uma gambiarra digna de uma divindade que se diz responsável pela criação do mundo.

Mas não há bombas. Não há justiça divina rápida, nem culpa suficientes que chamem à responsabilidade alguém que, seja por pura imaturidade, seja por completo descaso com a vida alheia, não acha que ela lhe pertence. Se a salvação é oferecida aos que buscam o perdão, há aqueles que acreditam piamente que sequer precisam dele. E deles, destes tantos monstros que temos por aí, eu tenho pena. Pena e nojo. Nojo e vergonha. Sim, é isso: Tenho vergonha de quem não admite precisar de perdão. Vergonha de quem não admite que é capaz de errar.

Texto besta, né? Sem graça, superficial. É, eu também achei, mas agora já escrevi. E sei que quem não se responsabiliza, não lê textos como esse. Então escrevi um texto besta e superficial, e foi à toa. Mas pelo menos eu aprendi alguma coisa com ele.

[O Paciência Negativa está entrando de férias. Em breve o autor retornará com publicações semanais inéditas, falando mal de Deus e o mundo e se auto-referenciando na terceira pessoa. Sejam pacientes e obrigado pelo carinho.]

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Saúde é o que interessa

Uma gordinha sentada imponentemente em seu trono de entrevistada, respondendo às mais diversas indagações de seu ilustre inquisitor sobre o que é que devemos consumir e o que é que devemos evitar a todo custo em nome de uma existência mais próspera e saudável. Se a imagem não lhe parece familiar, meus parabéns: Você provavelmente não tem passado muito tempo na frente da televisão. Caso contrário, já teria entrado em contato com a evangelização de um, dois ou mil nutricionistas – que parecem estar sistematicamente saindo de suas alcovas para dominarem o horário nobre (quiçá o mundo).

Confesso que sempre me faz bem ver uma nutricionista papagaiando dicas para uma vida mais saudável em algum programa de quinta categoria. Em primeiro lugar, a visão dantesca de uma quase sempre obesa, envelhecida e mal cuidada senhora me reconforta um bocado. Porque das duas uma: Ou ela realmente cumpre à risca todo aquele ritual diário de exercícios, preocupações e consumo de matinhos que propõe – o que só aumenta minha convicção na minha dieta balanceada de carne vermelha, sanduíche (iche!) e bacon – ou é uma hipócrita irreversível, que prega uma coisa ali, mas abastece a geladeira com as mais proibitivas delícias que a indústria alimentícia foi capaz de produzir. E nesse último caso, me tranqüiliza saber que ela está na mais absoluta mesma situação que eu – salvo pela culpa e auto-flagelação que provavelmente acompanham o descumprimento de seus próprios dogmas, e que não me afligem nem um pouco.

Mas apesar dos pesares, me preocupo muito com a minha própria saúde – motivo pelo qual cometo todos os abusos condenados pelas pastoras do way of life natureba. Explico: Como errado, prefiro um copo de Coca-Cola a um de água, pulo refeições na correria do dia a dia, sou sedentário por natureza e mais uma dezena de etecéteras que nem convém relatar aqui. Mas faço tudo isso com a certeza de que, no dia em que Dna. Morte sair das histórias do Penadinho para comunicar meu aviso prévio, poderei tentar suborná-la [funciona com a maioria dos demais funcionários públicos, e aqui não tem porque ser diferente]. Terei a possibilidade de abandonar uma série de hábitos desagradáveis para tentar evitar o inevitável. No entanto, se eu me alimentasse adequadamente, fizesse exercícios diariamente e evitasse álcool a qualquer custo, que moeda de troca teria para barganhar com a Ceifadora? Pois é.

No auge dos meus quase trinta anos de vida, nunca sofri nenhum infarto fulminante ou algo que o valha [não, caro devorador de aveia, isso aqui não é um tratado do além-túmulo, tampouco o testamento deixado em meu leito de morte para alertar outros sobre as conseqüências de uma vida repleta de abusos – sinto decepcioná-los]. Mas aí é que está o segredo: Um dia isso vai mudar. E quando minha saúde escorrer por entre meus dedos engordurados de óleo de pastel de feira, eu já tenho um plano perfeitamente bem traçado para melhorar minha qualidade de vida – ao contrário de qualquer comedor de alface que eu conheça. Demagogia hedonista? Talvez. Mas do alto do meu hedonismo, venho buscando aproveitar muito bem essa que pode ser minha única oportunidade de experimentar os prazeres “proibidos” que a vida traz. E até agora, tenho sido muito bem sucedido e sem experimentar conseqüências assim tão graves.

Um dia, serei obrigado por uma corja de cardiologistas enfurecidos a abandonar de vez o bacon. Mas o tempo passa para todos, e isso nutricionista nenhum diz na TV. Um dia, invariavelmente, todos estaremos velhos, cansados, à beira de uma falência de órgãos – não importa se você fumou a vida inteira ou gastou metade da sua renda vitalícia em rúcula, linhaça e academia. A grande diferença entre eu e um cidadão que conta calorias está aí: Hoje, entupo minhas veias de gordura, enquanto ele se entope de cereais e carne de soja. Amanhã, sairei com minha bengalinha para caminhadas matinais no parque e precisarei me preocupar com o colesterol – enquanto ele e sua bengalinha provavelmente serão capazes de caminhar um ou dois quilômetros a mais que eu, e continuará com sua dieta de cereais e carne de soja. Eu sei, eu sei – você está pensando que eu me arrisco a nem sequer chegar a tal idade, e que estou susceptível a um sem número de mazelas hediondas por não me cuidar agora. Respondo apenas que você, no alto de sua forma física, está susceptível a ser atropelado por um caminhão ou ser esfaqueado por um bandidinho por causa do seu relógio – e no entanto, eu não tento convence-lo a passar o restante dos seus dias enclausurado num quarto acolchoado.

Viver dá trabalho, e viver “direito” dá mais trabalho ainda. E o prêmio para o esforço extra não é senão alguns anos a mais sob os cuidados de alguma enfermeira boazuda, que eu nem mesmo teria, nos meus últimos anos de vida, condições físicas de cortejar. Embora eu concorde que talvez me restem menos primaveras do que aos ditos saudáveis, ressalto que estas seriam primaveras derradeiras – daquelas que, perdoem a crueldade, não me farão falta alguma. Pouco me importa se viverei até os noventa anos ou até os oitenta e cinco – prefiro, na verdade, marcar minha passagem para sei-lá-onde enquanto ainda for capaz de ir ao banheiro sozinho. E se o bacon pagar o valor do pedágio, e o álcool garantir o seguro das bagagens, já me dou por satisfeito.

[Caro auto-proclamado membro da “geração saúde”: Antes de sair berrando aos quatro ventos que eu sou um analfabeto irresponsável, lembre-se que os textos deste blog têm cunho humorístico – e mesmo que não tivessem, eu declararia aqui a mesmíssima coisa em uma tentativa de evitar eventuais encheções de saco. Mas se estas vierem, favor utilizar o botãozinho “Comentários” abaixo. Att, O Autor.]


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Um minutinho

Ei leitor, você tem um minutinho para ler este texto?

Pobre de você se respondeu que “sim”. Os próximos minutos da sua vida, ou talvez horas, serão gastos aqui, comigo, em uma atividade que provavelmente se revelará muito menos produtiva que todas as demais que você tem planejadas para hoje. Se eu me empolguei e escrevi demais, seu cronograma diário será decerto atrasado por minha culpa. Minha culpa? Sua culpa, na verdade, que caiu em um dos mais antigos contos do vigário da história.

Gente que pede “um minutinho da sua atenção”, em geral, não dá a mínima para o seu tempo. O desavisado que cede míseros sessenta segundos acaba perdendo muito mais tempo e dignidade do que pretendia quando tentou apenas ser simpático. E este cruel artifício, que pode até mesmo ser considerado uma forma de tortura psicológica, só é utilizado pelos malas de carteirinha: Testemunhas de Jeová [“Bom dia... A senhora teria um minutinho para a palavra do Senhor?”]; atendentes de telemarketing [“O proprietário da linha teria um minutinho para eu estar lhe passando uma promoção exclusiva?”]; pedintes [“Tem um minutinho, irmão? Eu podia tá matando, eu podia tá roubando...”]; eco-chatos [“Ei, você quer ajudar a salvar os pandas voadores da Namíbia da extinção? É só um minutinho...”]. E todos parecem ser devotos de Xerezade, personagem dos contos das Mil e uma Noites que escapou da morte graças à sua inigualável capacidade de emendar uma história na outra, para sempre, sem nunca concluir o discurso.

Acredito que o “um minutinho” não é senão uma variação menos pornográfica do “só a cabecinha”: Tentam te distrair com o diminutivo para baixar a sua guarda e, se você dá abertura, quando percebe já te enfiaram muito mais que o prometido. E você continua ali, suportando a dor da perda, pensando em como foi que se meteu naquela situação desagradável – e mais importante, pensando na forma mais rápida e menos insensível de se livrar do ser grudento. Ser este que – sinto informar – é provavelmente muito mais proficiente na arte de embromar do que você é na arte de escapar da embromação.

Assim, deixo aqui um conselho – a melhor saída para evitar aborrecimentos talvez seja justamente a mais óbvia: Não ceda nunca, em hipótese alguma, nem que sua vida dependa disso, minutinho algum a ninguém. Ninguém – nem mesmo àquele padre gente boa, ou àquele padeiro legalzinho que fica puxando papo com os clientes no balcão. Dê apenas o seu melhor sorriso, diga que está atrasado e continue com seus afazeres – é melhor prevenir, do que remediar. Mas se você não se agüenta de tanta benevolência, se não consegue ser antipático nem com um membro da Al-Qaeda, não se preocupe: A humanidade também pode fazer uso de sua paciência infinita. Na pior das hipóteses, você pode tomar para si a tarefa de distrair esses sujeitinhos e evitar que eles azucrinem gente como eu – gente que prefere a morte lenta e dolorosa à perdição de ser envolvido em um bate-papo cotidiano com alguém que eu não conheço, sobre um assunto que não me interessa. Sim, você pode fazer as vezes de “boi de piranha” – e nós, os impacientes de plantão, lhe seremos eternamente gratos por seu sacrifício.

Só não me olhe com arrependimento e nem venha me pedir socorro depois. Eu avisei.

[Este texto foi inspirado em uma conversa por MSN com @ursulafar, enquanto esta sassaricava para se livrar de alguém a quem havia cedido ”um minutinho do seu tempo“ – a tonta.]