sexta-feira, 16 de julho de 2010

Deus ex medicina

Vocês já se deram conta de como somos seres de sorte, vivendo em tempos de tantos avanços médicos? Há dez ou vinte anos -- tempos medievais -- um diagnóstico HIV positivo era garantia de morte certa em alguns meses, no máximo um ano. Há sessenta, tínhamos a tuberculose, tomando centenas de vidas. Isso sem falar da quantidade de riscos desnecessários que corríamos por pura ignorância, como o fumo desenfreado dos anos cinquenta, o sexo desprotegido dos anos setenta, a carne vermelha de sempre...

Bons tempos, aqueles.

Sendo um cientista por profissão, tento não ser da opinião que “a ignorância é uma benção”. Mas pelo mesmo motivo, sinto-me inclinado a questionar toda e qualquer grande revolução acadêmica que traga conclusões na linha de “não faça isso que você sempre fez, ou você experimentará uma morte terrível, humilhante e dolorosa”. E se por um lado acredito que, em alguns casos, o Ceifador de fato visita com mais frequência aqueles que carregam determinados hábitos, também acho um saco qualquer discurso moralista da mídia que faça sentir-se um idiota quem come isso, fuma aquilo ou bebe sei lá o que. Bater com as botas, todos vamos um dia -- mas acho digno ao menos poder tentar escolher a cor, tamanho e número dos calçados.

Até tempos atrás, o café era o vilão. E antes dele, o tomate. Um fazia mal ao coração, o outro era o equivalente ao demônio em forma de fruta [sim, queridos, o tomate É uma fruta -- mas não desviemos do foco da discussão]. Tudo corroborado por forte embasamento científico, com centenas de milhares de dólares sendo destinados aos esforços de dedicados pesquisadores -- estes mártires e protetores do nosso bem estar. Aliás, o café e o tomate -- estes venenos -- são apenas dois dos criminosos presentes em alguma das tantas listas negras de tudo o que um cidadão consciente deveria evitar. Ah, como é fácil viver do “jeito certo”, nos dias de hoje!

Diferente da Religião -- a irmã mais velha e retrógrada da Medicina, e por isso mesmo sujeita a debates ferrenhos e opiniões contrárias de uns poucos -- o Grande Deus Branco não tem concorrência, e não admite oposição. Afinal, quem diabos se oporia a um resultado científico, apresentado por excelentíssimos doutores de jaleco, cujas vidas foram dedicadas ao estudo e às descobertas do certo e do errado? Ninguém em sã consciência, é claro. Apenas um ou outro gato pingado, sem amor pela vida ou admiração por este mundão lindo de Dr. Deus. Algum irresponsável, que por alguma razão inexplicável se recusa a ganhar algumas preciosas horas a mais de vida ao módico custo de nunca mais comer tomates ou nunca mais consumir uma xícara de café. Gente ignorante, essa, que recusa verdades canônicas ilustradas por gráficos e estatíticas acima de qualquer suspeita.

E já que gostamos tanto de números, vamos a alguns: Essa descoberta monumental que você vê no Jornal Nacional na hora do jantar, que o faz questionar cada grão de feijão no seu prato, foi possivelmente publicada em alguma conferência na Namíbia em um artigo composto por um punhado de autores. Destes, 4% incluem grandes catedráticos que assinaram o trabalho, mas provavelmente só leram o resumo e a conclusão. Outros 21% são doutorandos preocupados em obter o maior número possível de citações a fim de garantirem a aprovação de suas teses. Uns 27% são alunos de mestrado que passam no máximo duas horas diárias no laboratório, buscando resultados bombásticos que justificassem sua ida mais cedo para casa. E 53% consistem de alunos de graduação -- que de fato escreveram o artigo, mas estavam mais preocupados em terminar suas faculdades do que em salvar o mundo.

Este artigo revolucionário passou pela mão de dois ou três revisores (anônimos!), que sequer tinham conhecimento suficiente para palpitar sobre o tema. Mas ele foi aprovado, publicado, e caiu na mão de algum jornalista que -- novamente -- só leu a conclusão e não tinha conhecimento de causa. Jornalista este que, assim como muitos aqui, sequer foram capazes de notar que a soma de algumas das porcentagens apresentadas era diferente de 100% -- o que dirá de escrever uma reportagem realista sobre o assunto. E ainda que outros dez artigos publicados por outros autores desmintam o resultado bombástico, é bem possível que estes nunca vejam a luz da mídia – pelo simples fato de que o contador do ibope gira mais rápido por novidades desgraçadas do que pela consumação do que já se sabia antes.

Conheço gente que viveu mais de cem anos sem nunca tomar conhecimento de nenhum destes importantes ensinamentos da Medicina, e também gente saudável que morreu cedo -- atropelado por um caminhão ou engasgado com uma azeitona. Assim, desculpem-me os grandes doutores da Medicina, mas prefiro continuar comendo meu tomate -- mesmo que isso me leve ao túmulo mais cedo e sem direito de contestação. E no meu velório, desliguem a TV, sirvam café e fumem à vontade.

[Texto inspirado por twitts do pobre @o_colecionador , este coitado que não crê no Deus-Medicina. E que por isso mesmo, deverá viver mais -- e melhor -- que muitos dos discípulos da nova doutrina]


13 comentários:

  1. Ah tá!!!!
    É ruim que vou abandonar o tomate, fã de saladas de folhas e tomates que sou, e como uma fidedigna descendente de italiano, fã das massas, regadas a muito molho do mesmo... morrerei comendo essa fruta.
    Café??? Piorou!!!
    I ♥ café!!!
    Nem precisa falar q morrerei tomando, do bem pretinho, até q a morte nos separe.
    Minha bisa faleceu ano passado, assim de nada, de idade mesmo... com 100 anos...
    Nunca faltava na casa dela: cerveja, café, coca-cola, frituras... e claro, tomates. Tem melhor exemplo pra seguir???
    Bah pra tudo isso!!!!
    Beijão Fábio!!!!
    Edilene

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  2. Números são só a prova que tudo que nos cercam são quantitativos..
    Eu tb não me importo muito com o que eu como ou deixo de comer... quero é aproveitar enquanto eu realmente posso comer XD

    hehehehe bom texto! ^^

    Bjos

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  3. @fabio_piva você se esqueceu do ovo. o vilão que provocava o ataque do colesterol ruim e hoje é fonte de proteína "branca" para marombeiros e saudáveis em geral.

    GENTE MAIS CHATA ESSA!

    façam tudo o que quiserem, mas não esperem que eu os siga. vocês não me pagam nada além de sermão, portanto não tenho essa obrigação, valeu?!

    ó, e o comentário elogioso é que o seu texto melhora a cada post.

    abraço grande.

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  4. Aêee nº 4!! xD
    Olha, concordo... A vida é pra ser admirada e vivida com dedicação, o que de forma alguma quer dizer que precisa ser controlada.
    A longevidade dela está muito mais em nossa cabeça, que cria nossos hábitos e preferências. Deixar de lado o que de fato queremos fazer com a nossa existência simplesmente pra TENTAR (como você disse, é muito incerto) viver uns anos a mais é completamente contraditório à aproveitar o presente. E pra mim, não aproveitar o presente está muito mais perto de não dar valor à vida.
    Parabens, belo texto... Esse é o tipo de assunto pra render muito num BAR, com muita CERVEJA e FUMAÇA (risos)

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  5. Que eu acho que a medicina assumiu o papel que um dia foi da igreja, vc já sabe. Contrariar os "dogmas" significa ser punido - não com o "inferno", mas com doenças! Basta prestar um mínimo de atenção na forma como as "importantes descobertas" são anunciadas.

    Mas, pior que isso é ver de que forma os CIENTISTAS e os JORNALISTAS tornaram-se, nestes tempos estranhos, as grandes PUTAS da sociedade, uns "provando", outros divulgando o que é de interesse dos donos do mundo.

    Aliás, isso dá um outro texto.
    Esteja à vontade.

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  6. Engraçado.

    Eu sempre digo que passei a confiar menos nos profissionais de QUALQUER área depois do meu terceiro ano de graduação. Imagina que legal: Você, com o ombro ruim, vai no ortopedista, e está justamente com aquele problema que o cara deu migué na hora de estudar por que só precisava de 3 na prova.

    Você levou minha desconfiança da área de atuação pra área de pesquisa, hehehe. Legal.

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  7. kkk adorei o parágrafo q começa com: "E já que gostamos tanto de números..."

    Bom, quem me conhece sabe que eu como bem saudável, faço exercícios físicos e compartilho informações sobre isso, mas uma coisa é certa: nunca forcei nem vou forçar ninguém a comer como eu, acho isso uma grande invasão.
    E um costume que eu tenho é duvidar de tudo! Sempre que leio algum artigo do tipo, primeiro duvido e busco mais informações pra depois talvez acreditar.
    Ainda sim não largo meu café, detesto alho e azeitona, durmo pouco e uso adoçante demais.

    Bom, de que adianta viver mais de cem anos se estes forem repletos de restrições?

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  8. Olha, da luz do sol à água, tdo cura, tdo mata, como já dizia o filósofo "remédio ou veneno? Depende da dose" do momento, da vítima ou paciente rs ...

    E, como em estatística, nrs, pesquisas como na vida em geral "quem procura acha", acho q diante dessas pérol... digo "estudos" q são publicados d vez em sempre pela mídia sem noção e q não raro se contradizem, o melhor mesmo é ignorá-los sem solenidade mesmo rs ou no máximo encará-los como são, Pegadinhas ...Rá! rs

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  9. Não vou sequer comentar o conteúdo porque você sabe que - nesse caso - posso assinar em baixo de tudo que você disse de olhinhos fechados. Texto perfeito - e fantástica descrição do como são produzidos os artigos científicos.

    Mas quero deixar registrado: você está se tornando um escritor de primeira linha. Seus textos são sempre uma delícia de ler e estão melhores a cada post. Parabéns, você me mata de orgulho!

    Lílian Buzzetto

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  10. Reter o que bom usando bom senso e o conhecimento.
    Texto muito bom, gostei!

    Sandra Rodrigues

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  11. Está provado que o tomate protege contra o câncer de próstata e o café faz bem a criancinhas, fazendo com que prestem mais atenção às aula quando o consomem de manhã -- e não lembro mais o que, mas o café deixou de ser vilão outro dia.
    O cigarro ainda vai ser bom, vocês vão ver só.

    Olha, Fabio. Minha avó morreu de cancer...SENIL. Cancer esse que apareceu aos 93 anos, depois dela ter passado a vida comendo pimenta, fazendo e consumindo doces que ardiam a garganta de tanto açúcar, e todo o resto da planilha de DONT's que os médicos davam para ela cada vez que ela os visitava. Morreu aos 94, lúcida, inteligente, bilíngue e exigente. Só nos últimos 10 dias é que a coisa ficou estranha, porque ela se apaixonou pelo assistente do médico que tinha uns 60 anos menos do que ela...mas acho que não foi a comida. Deve ter sido alguma coisa genética.

    :)

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  12. Ahhh ,você....
    A cada dia que passa,um texto melhor que o outro...Assino embaixo tudo que escreveu...toda orgulhosa aqui..
    Beijos da Dinda..

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  13. É! Eu trabalho na área da saúde (farmácia) e estou estudando para ser uma farmacêutica; é certo que a cada dia, vejo muitas bizarrices chegando pelas mãos dos clientes (que antes eram pacientes) com aquelas receitas mal feitas, com dosagens erradas e nomes de medicamentos que nem existem no mercado.
    Quem são esses doutores e como se formaram?
    O importante é sermos livres para escolher. =)

    Parabéns pelo texto.
    Beijo

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