sábado, 3 de julho de 2010

1984 açucarado

Sujeito de péssima memória que sou, guardo pouquíssimas lembranças da infância -- mas uma, em especial, me acompanha até hoje: Lembro-me nitidamente de que adorava o mar, e a principal razão era a sensação de liberdade que experimentava toda vez que me punha a boiar sobre as ondas, feito um pedaço de isopor velho. Mas além da liberdade, lembro-me do desespero incontido de minha mãe que, histérica, berrava para que eu tomasse cuidado para não ser tragado pela sorrateira correnteza.

Fast forward de 20 anos.

Democracia, a falácia predileta do povão. A idéia até que é promissora -- "poder para as massas" -- e é cultuada pela sociedade moderna como se fosse a última bolacha do pacote. Declarar-se um anti-democrata, ou mesmo levantar qualquer suspeita sobre a adequação do regime à realidade brasileira é, no mínimo, uma atitude suicida ou masoquista. É um convite à encheção de saco, extensível a todos os pseudo-intelectuais e chatos de plantão.

Mas quer saber? Nada disso importa: Não vivemos em uma democracia. E esta não é uma declaração política, nem uma provocação indireta aos filosófos de banco de praça. É apenas uma constatação prática -- não é possível fazer valer a opinião da maioria, se aquela maioria não tem opinião alguma, sobre absolutamente nada.

Vejam só como são as coisas: Sujeito acha o racismo um absurdo, mas aprova o sistema de cotas para negros nas Universidades. Vocifera contra qualquer tolhimento da liberdade individual, mas comemora como se fosse título da Libertadores uma lei anti-fumo que tolhe, entre outras coisas, o direito de escolha do dono do bar da esquina sobre quem é que frequenta o seu estabelecimento. Aplaude o orgulho gay e compra camisetinha regata com estampa de arco-íris, mas vomita asneiras como “meu filho Norberto, graçasaobomdeus, é pegador que só!”. E de noite, se esborracha no sofá para assistir o Big Brother estrelado por um preto, um bicha, uma lésbica, um pobre, um intelectual, uma loira e um não-sei-mais-o-que que estão lá tão somente para -- claro! -- estirpar os últimos resquícios de preconceito que ainda contaminam seus vizinhos que, coitados, são muito menos esclarecidos do que ele.

O ponto é que o zé povinho, já há tempos, é governado por uma moralidade que não é a sua própria. Vivemos em uma distopia orwelliana açucarada: Novos certos-e-errados são produzidos todos os dias, a toque de caixa, e são incorporados em nossa cultura através de jingles bonitinhos ou discursos eco-idiotas. E o povo aceita, acha lindo, age como se aquilo sempre tivesse estado lá. E ai de quem discordar -- subversivo, egoísta, reacionário, pecador! Da mesma forma que a Oceania sempre esteve em guerra contra a Lestásia, ninguém questiona, ninguém verifica, ninguém contraria -- porque contrariar é isolar-se, e isolar-se está fora de moda na Era do Twitter.

Acho irônico viver, em pleno século 21, em uma sociedade que me lembra meus sete anos, quando eu ainda boiava sobre as ondas. Em meio a um povo que goza de uma falsa sensação de liberdade, mas que não parece ter noção da sutil correnteza que os joga para lá e para cá. E que levanta a bandeira da opinião “própria” que lhe é incutida diariamente por propagandas de sabonete. A diferença é que eu, mesmo estando naquela época no auge da minha inocência, sabia da existência da maré e sabia que deveria manter minha posição para não ser tragado. Mas suponho que as profundezas da aceitação coletiva sejam muito mais sedutoras que as do oceano.


9 comentários:

  1. Infelizmente nada, nem um belo texto como esse fará a cabeça desse povo mudar.
    O ser humano é um paradoxo de si mesmo.
    Aquela velha frase: faça o que eu digo, não faça o que eu faço, fica cada vez mais nítida quando observamos o comportamento dos que nos rodeiam.
    Hipocrisia galopante mesmo!
    O que fazer? As pessoas tem preguiça de pensar, de ler, de debater, de argumentar, de refletir... Se existir um botão que resolva tudo por elas, elas apertam.
    Cabeças cômodas.
    Mas se existir um botão que destrua esse tipo de gente que tanto desprezo... Vou eu apertar? Não. Não é assim que eu vou resolver as coisas. Se apertasse, me igualaria a esse tipo de gente que, infelizmente, é a maioria nesse mundo.

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  2. Olá!!!
    Vim reler seu texto... afinal já o li umas várias vezes antes de ele ser postado e... putz... sem comentários, hipocrisia é foda!!!
    E infelizmente a sociedade é hipócrita, lá no trabalho "eu não perco meu tempo assistindo programas como o BBB", chega na casa do caboclo na hora do programa e ele vai estar largado no sofá como vc disse... sem perder nenhum detalhe.
    As cotas... malditas cotas, apesar de aqui no meu estado elas não existirem, penso pelo todo. E lá vai uma pessoa dizer, mas pô vc é branca, loira e estudou em escola particular, bom tive sorte dos meus pais poderem pagar escola, minha irmã já teve q fazer o ens. médio na rede pública pq não dava mais pra meus pais pagarem... fazer o que, e mesmo assim ela batalhou e recentemente se formou jornalista na universidade federal.
    Mas a hipocrisia ainda impera meu amigo... fazer o quê...
    Esse post pra mim é o top!!! Apesar de ser fã dos seus escritos, esse é o top até agora.
    Beijão!!!
    Edilene.

    P.S.: ansiosa pela próxima 6ª feira!!!

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  3. Eu também vim aqui revisitar um texto - excelente, por sinal - que já conhecia. Sabe que, passeando pelas linhas, eu ri sozinha? Foi, pra ser mais exato, na parte que menciona os reality shows. O sujeito vai, senta confortavelmente em um sofá, aí liga a TV e o que vê lá? O povo sentado em... outro... SOFÁ! Muita emoção, né? Uma nova fronteira, quase o mundo de Malrboro. U-hu. Por essas e por várias outras [incluindo o Bart] é que eu só vejo Simpsons!

    Sensacional, as usual.

    Beijo grande,

    Kari
    www.mulherices.com.br

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  4. Mas fábio, já existiu algum lugar no mundo que não funcionasse assim? Democracia não é fazer valer a opinião da maioria, como muitos pregam, mas é você ter o direito de expressar essa opinião. Numa ditadura, o mesmo processo acontece, com a diferença que pode-se usar poder de polícia contra você.
    Hipocrisia, de certa forma, todos nós temos, acho que faz parte - a habilidade de agir de uma forma quando se pensa de outra forma é muito importante para a humanidade, e isso até permite que a gente por exemplo ajude um amigo quando está com vontade de ir para outro lugar.

    De qualquer forma, gostei do texto.
    Abraço
    T
    www.dissoante.posterous.com

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  5. É, pensar dá preguiça... dá trabalho, é difícil! Tudo que não tem um caminho pré-estabelecido é difícil pois pode dar errado e a responsabilidade é nossa.

    Então nos tornamos robôs que seguem diretrizes. Se, ao seguir a diretriz que aprendi na TV algo der errado, a culpa não é minha, fui vítima, foram eles que me mandaram!

    Se eu fizesse por vontade própria, sem influência dos pais, escola, tv, internet, orkut, twitter, revista etc então a responsabilidade seria minha... e Deus, como é difícil alguém assumir a responsabilidade!

    Ninguém gosta muito do determinismo, mas se a corda arrebenta pro seu lado, é num argumento determinista que vão se apoiar.

    E quanto ao excesso de leis que surgiram recentemente, se deve à preguiça de pensar também... se houvesse um pouco mais de bom senso e cada um respeitasse o espaço do outro, não haveria necessidade de tais leis.

    Outra coisa é que o "zé povinho", como vc falou, só respeita quando dói no bolso ou qdo está ameaçado de coisa pior. O medo governa... Ser amado ou ser temido? Parece que a segunda opção é a vigente.

    Fabio, gostei mto da analogia q vc fez com o mar... é mantendo nossa posição que não afundaremos. Isso não significa ter a mente fechada. Temos que dar o direito a todas as partes de falar. Mas nossos argumentos têm que ser sustentáveis. Nossa posição tem que ser firme não importa de que lado ela esteja.

    Excelente texto novamente!

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  6. Eu não vou postar uma mega comentário-post concorrendo com o seu texto. Não ouso. Nem vou dissertar sobre cada parágrafo.
    Vou falar rápida e diretamente o que vem sendo esfregado na minha cara todos os dias, assim, sem dó: "Você é brilhante, Fábio Piva!"

    Mas eu acho que você já sabe disso.

    Keep it up...can't wait to read you again.

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  7. Fabio,
    Dia desses esbravejei "um poha! como assim? povo precisa votar direito?" a frase em questão era de uma pessoa nitidamente "evoluida", "letrada" [cm diria minha mãe]...
    Ora! Povo não pode saber votar pq simplesmente não sabe para que serve o voto.
    Não sabe nada sobre direito [nem esquerdo].
    Não sabe o que é e muitas vezes não quer ser incomodado pelas teias subversivas da tal democracia.
    povo quer paz. comida. uma roupa pra vestir e uma cama pra dormir ... e só!!!
    quem se atreve e ousa se embrenhar neste universo acaba confuso conformado ou louco!
    só nao dá pra desistir.
    educação, ações de cidadania[nesta sim eu acredito] podem fazer diferença...
    teus textos, por exemplo... um bom motivo para uma galera que esta na maré baixa do conformismo se mexer!! Bj e parabéns...

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  8. Antes de mais nada, Belíssimo texto viu Fábio?
    Onde está mesmo essa tal Democracia?? Será que a maioria das pessoas realmente sabem o seu significado?
    Sei e compreendo que esse assunto é polêmico, mas esbravejar sobre democracia por "pensadores" que a entendem como determinar por exemplo, as famosas "cotas" nas Universidades, isso sim já é uma forma de racismo. Isso implica em dizer que negros, ÔPA desculpe-me, Afrodescendentes, não são capazes de ocupar uma cadeira nas Universidades por mérito. Apesar, dessa humilde leitora, ser caucasiana, estudei em Escola Pública toda a vida, filha de pais humildes e que ganhavam mísero salário mínimo, aqui estou, "diplomada" e até considero-me bem sucedida na Profissão que escolhi.Deixo bem claro, que por próprios méritos..
    Vivemos numa falsa moralidade, isso é a Verdade Nua e Crua.
    Um grupo de moralistas, digo, falsos moralistas, decidem que algo é certo e aquilo é errado e vão lá, todos dizendo amém!!! Povinho e Povão, é hora de acordar..

    Um beijo no seu coração!
    arleidebraga
    Twitter @arleidebraga

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  9. A eterna 'Revolução dos Bichos'. Uns mais porcos que outros.
    E resta a serenidade de saber ser uno, assim.
    Vc vai mto bem, surpreendentemente bem no que, pra mim, parece ser o sentido da vida.
    Um beijo!

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