sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Coitadinhos

O sujeito no farol se aproxima da sua janela, que nem deveria estar aberta – mas está por alguma razão desconhecida – e aperta o “play” no discurso ensaiado: “Boa tarde, senhor, eu podia tá matando, eu podia tá robando, mas tô aqui pedindo uma ajuda, não como há vários dias, meu filho tá doente, minha mulher me bate, meu time tá na segunda divisão, meu cachorro foi embora...” etc, etc, etc. Quem sente pena de exemplares como esse ainda não se deu conta desta mutação genética, fruto de seleção natural às avessas, que se abateu sobre a espécie humana sei-lá-quando: Você acaba de se deparar com um Coitadinho.

Outrora raros, os coitadinhos parecem estar se proliferando de forma espantosa no reino animal. Seu peculiar apetite pela auto-piedade, antes reprimido a todo custo pelo bom senso geral e pelo amor próprio, tem se tornado abundante na natureza mediante a iniciativas filantrópicas aos moldes de “Criança Esperança” e programas sensacionalistas como o da Sônia Abraão – aquela criatura de ainda outra espécie que ocupa o topo da cadeia alimentar arquitetada sobre as desgraceiras cotidianas. Assim, se em outros tempos a condição de “coitadinho” era tida como ofensa grave, hoje é motivo de orgulho e até objetivo de vida para alguns menos invejados pobres clássicos. Afinal, o pobre clássico não tem nada além de contas a pagar – enquanto o Coitadinho se esbalda em compadecimento alheio e comoção social por sua triste localização geográfica: O fundo do poço.

Existem diversos subgêneros de Coitadinhos, sendo alguns dos mais tradicionais: O Coitadinho Financeiro, destituído de orçamento suficiente para sustentar um estilo de vida minimamente aceitável [que para ele, inclui antena parabólica no barraco, carro novo na garagem e viagens periódicas ao litoral farofeiro]; o Coitadinho Emocional, destituído da tampa de sua panela, o Yin para o seu Yang [mas que prefere choramingar por sua solidão excruciante ao invés de procurar se fazer interessante para possíveis pretendentes]; o Coitadinho Mal-Compreendido, destituído de sorte na vida e reconhecimento por seus talentos tão evidentes [estes não conseguem compreender, por exemplo, porque cargas d’água ninguém os contrata como comediante de stand-up ou apresentador de show de auditório]. E todos se alimentam das mesmas coisas – olhares complacentes, lágrimas compadecidas e aquele balançar de cabeça que todos nós proferimos quando nos deparamos com uma situação tão injusta quanto a caça injustificada aos pandas chineses. Dessa forma, o sentimentalismo coletivo que se abateu sobre a sociedade neste século faz do mundo moderno o habitat perfeito para estes bichinhos tão infelizes e mal-amados. Resta saber qual será o próximo evento de destruição em massa que há de nos salvar deles.

Costumo ser defensor ferrenho do direito à existência de qualquer espécie que venha a ter sucesso evolutivo – mesmo os pernilongos, cuja função real na natureza ainda me é uma incógnita – mas não consigo deixar de temer pelo futuro do planeta, caso os Coitadinhos se estabeleçam como espécie predominante. Dessa forma, resisto ainda à doce tentação de reclamar minha cota de piedade alheia – resisto, portanto, ao martírio recompensador de me tornar um Coitadinho. Passo os dias a moderar choramingos, reservar lágrimas, evitar a pena – mesmo quando estas se fazem facilitadores químicos para suportar a dura realidade que todos enfrentamos diariamente lá fora. Da mesma forma, não dou esmolas, não poupo choques de realidade quando se fazem necessários, não cedo ombro a quem não se ajuda. E penso que, agindo assim, estarei contribuindo para a extinção dessa especiezinha sem-vergonha de parasitas emocionais. Porque dos pernilongos, meu inseticida já dá conta.

[Pauta inspirada por @rafapedro – se não gostarem (Coitadinho ou não), choraminguem com ela]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

As flores de inverno

Era uma vez um conto que não sabia como ser começado. Seu autor, imerso que estava em tristeza e desilusão plenas, havia abandonado a criatividade, a vontade de escrever, a esperança. Havia, assim, abandonado a pena. O conto, que não tinha nada com isso, não se fez de rogado: Teimoso como o próprio autor, instalou-se no fundo de sua alma esperou. Esperou quieto, quase imperceptível – como uma idéia que morreria ali, inerte, sem nunca ser consolidada. Esperou pelo menor descuido do autor e um dia, à luz da primeira oportunidade, escapou. Escapou e escreveu, arriscando o desperdício vão de seus derradeiros suspiros de conto, o que seria o mais óbvio dos princípios, quase um clichê descartável. Escreveu apenas isso: “Era uma vez”.

O autor assustou-se com aquela manifestação súbita de sua mão dormente, que quase como que por conta própria, escrevia aquelas palavras insossas: “Era uma vez”. Observou o papel manchado de nanquim – seu papel, seu nanquim, mas não suas palavras – e decidiu continuar, apenas por brincadeira. Afinal, ele não tinha nada mais a perder, e na pior das hipóteses, a empreitada acabaria como tantas outras de suas frustrações recentes – na lixeira, transformada em uma bolinha de papel amassado. E o autor tentou, e como tentou – mas não conseguiu esboçar nem uma palavra sequer além daquelas que jaziam ali, como que clamando por continuidade. E foi então que, prestes a desistir do conto, o autor olhou pela janela. Olhou pela janela e viu seu jardim.

Aliás, jardim vírgula – aquilo já não era mais um jardim havia muito tempo. Era um pedaço ínfimo de terra árida, onde não crescia mais nada desde a Grande Tempestade. Nada mais brotaria ali – nem mesmo a mais resistente das plantas. Nada, imaginava o autor, a não ser aquelas quatro flores de que ele nunca havia se dado conta. “Mas eu não plantei isso”, pensava incrédulo, “eu nem mesmo reguei nada disso, como pode?”. Mas elas estavam ali, imponentes, lindas, firmes. Muito mais firmes do que ele, pensava, e de uma beleza que encantaria mesmo aqueles que não tem amor às flores. E o autor, quieto, apenas observou.

A primeira flor que saltou aos seus desconfiados olhos foi a Margarida – linda em seu contraste entre o branco e o amarelo, dona de si e livre, clássica e elegante por excelência. Bálsamo de Myddvai, herança da Dama do Lago de Llyn-y-Van-Vach para a humanidade e capaz de restaurar nos moribundos a esperança de viver, aquela flor tão majestosamente delicada. “Bem-me-quer, mal-me-quer” – o autor se lembrava do descaso com que alguns apaixonados despetalavam as margaridas, sempre sob o pretexto de provar seu amor verdadeiro um ao outro. E por isso, sentiu compaixão – uma compaixão identificada, pois ele próprio se sentia despetalado por razões tão inverossimilmente nobres quanto aquela. “Bálsamo”, pensou ele, que já se sentia menos ferido apenas por ter vislumbrado aquela presença angelical através da janela. Aquela margarida era bálsamo.

Enquanto admirava a graça elegante da margarida, notou uma sedutora Violeta – que com suas cores fortes e contrastes marcantes, parecia não se importar com os olhares pudicos dos amantes das flores mais clássicas. “Sou roxa, sou provocante, e daí?”, estava estampado ali, naquela violeta cheia de vida – uma vida que o autor sequer se lembrava que existia no mundo. E ao notar aquela flor atrevida no canteiro, compreendeu de imediato porque Zeus a havia escolhido como honraria para a última morada de sua amante proibida Io, a humana que havia roubado seu coração. “Audácia”, pensou o tímido autor. Aquela violeta era audácia.

E o rapaz não teria talvez tirado os olhos da Margarida e da Violeta, não fosse a presença daquela Rosa – linda em sua exuberância provocativa, como se soubesse de sua ligação com Clóris, a ninfa das flores e última amante de Zéfiro, o vento-oeste. As rosas, sabia o autor, eram presenteadas pelos amantes como símbolos da paixão às amadas desde que o mundo era mundo. Não há dama viva, diz a lenda, que resista ao amante acompanhado de um ramalhete de rosas. E mesmo sabendo que as rosas traziam espinhos, entendia que eram espinhos de amor. Porque o amor dói, fere, e também tem espinhos. “Poesia”, pensou o autor. Aquela rosa não era senão poesia.

A última flor que se erguia sobre a aridez do jardim através daquela janela era um Lírio. Branco, puro, modesto – a singeleza que emanava daquele belo lírio só podia ser uma das definições de felicidade, imaginava o autor. Fruto do amor maternal de Juno por Hércules, que abandonado para morrer no campo por sua própria progenitora, encontrara no leite da Deusa-Mãe forças para continuar vivendo. Forças e lírios – conseqüências do leite e da fertilidade de Juno. E aquele Lírio em particular fazia, parecia ao autor, jus à crença de que aquelas flores são capazes de reconciliar até mesmo os mais feridos dos amantes – era um Lírio como nenhum outro. “Lealdade”, imaginou em seu íntimo. Aquele lírio só poderia ser lealdade.

E o autor passou horas a admirar o seu jardim – sim! Aquele pedacinho de terra morta era um jardim, enfim! – que perseverava mesmo sem cuidados ou chances de existir. E admirou a persistência daquelas quatro integrantes tão viçosas, que haviam teimado em crescer ali mesmo sem que ele as tivesse plantado. E pensou que, se mesmo em condições tão adversas aqueles delicados seres conseguiam se fazer assim tão belos, ele também conseguiria, precisava ser capaz. Ele devia isso às flores, as companheiras que o assistiam do outro lado janela. E então ele se lembrou do conto, aquele conto que havia estado à sua frente, intocado, durante todo o episódio das flores. Voltou os olhos para a folha de papel vazia, a não ser por aquelas três solitárias palavras: “Era uma vez”. E se pôs a escrever.

E escreveu, escreveu como se nada mais importasse. Escreveu aquele que talvez fosse seu texto mais longo, mais difícil, mais cansativo. Escreveu e, quando já se aproximava do final, quando já estava exausto e sem idéias, quando achava que não conseguiria concluir o que havia começado, olhou mais uma vez pela janela. E foi somente então que o autor percebeu uma quinta flor ali – machucada, quase morta, mas ainda lutando por existir naquele jardim. Era um broto de Amor-Perfeito, talvez a mais perseverante das flores que ali estavam.

Ah, sim!”, o autor agora se lembrava. Aquilo não era um broto de Amor-Perfeito, eram os resquícios de uma frondosa flor que ele já conhecia. Aquela flor não havia brotado após a Tempestade, não. Ela não era como as outras. Ela havia estado ali sempre, havia resistido à Tempestade, a pior das tempestades. Um broto triste, agora sem flores, mas antes de tudo vivo. E resistia, inexplicavelmente resistia. “Volte pra mim”, pensou o autor. Aquela flor representava o “Volte pra mim”, um pedido desesperado de um amante que havia perdido a razão, e por isso perdido a razão de sua existência. E o Amor-Perfeito sempre havia sido a flor predileta do autor que, ao vê-la ali do outro lado da janela – sofrendo, ferida, mas persistindo – chorou. Chorou pelos ferimentos da flor – queria curá-los todos, todos! – mas sorriu por ela ainda se fazer presente. E soube então o que Homero pretendia quando dizia que estas lindas, as mais lindas das flores, costumavam ser buscadas antigamente para a superação da ira: O filósofo provavelmente já havia notado que elas resistiam às tempestades. “As mais cruéis das tempestades”, pensou o autor, e a mais linda das flores. E ela resistia, apenas resistia, recusando-se a deixar o mundo antes da hora – como aquele conto.

E foi só então que o autor percebeu o que era assim, tão óbvio desde o princípio. Aquela folha de papel era somente isso: Uma folha de papel manchada de nanquim. O conto, aquele conto que havia se recusado a desaparecer antes de existir, já estava escrito mesmo antes daquele “Era uma vez”. O conto se fazia presente ali, do outro lado da janela. Eram as flores, “o conto eram as flores!”, pensou o autor – aquelas cinco flores. E percebeu que pouco importava o que estivesse escrito sobre aquelas linhas, pouco importava como terminaria a história, pouco importava se o resultado seria aclamado pela crítica ou se seria uma de suas piores obras literárias. E em especial, pouco importava o que ele escreveria no final. E assim, o autor redigiu ali as palavras que havia escolhido para concluir – não com uma lição de vida, nem com uma reviravolta impressionante. Terminou como sabia que deveria terminar – tinha tanta certeza! – e como tantas histórias já haviam se encerrado antes. Terminou com palavras óbvias, tão óbvias como as que haviam brotado no papel contra a sua vontade quando ainda nem eram suas. Terminou da melhor forma que pôde, e enquanto escrevia aquelas derradeiras passagens, experimentou uma segurança que até então nunca havia experimentado ao concluir nenhuma de suas obras. E assim, o autor suspirou profundamente, um suspiro como nenhum outro, e escreveu ali, na última linha do papel: “E viveram felizes para sempre”.

[27/08/2010]

[Não -- o Paciência Negativa não se tornou um blog de textos meigos. Este primeiro (talvez último) conto não reflete as crônicas sarcásticas de sempre, e não obstante foi o texto escolhido para o retorno do blog. Por que? Porque eu quis. Semana que vem voltamos com a programação normal de textos resmungões.]