sexta-feira, 30 de julho de 2010

Lugar nenhum

Quando eu nasci, fui recebido com muita alegria por toda a família -- mamãe, papai, vovôs, titios etc. Vi a luz pela primeira vez em um hospital bem preparado, tocado por médicos capazes e forrado por paredes branquinhas. Tudo muito bem financiado pelo contribuinte -- fosse em forma de impostos, fosse através do plano de saúde privado que papai pagava todo mês em dia. Mas falhei em notar a presença de algum representante do então presidente Figueiredo, que na ocasião deveria estar mais ocupado com os últimos suspiros do Regime Militar.

Cresci como cidadão exemplar. Na escolinha, sexta-feira era dia de hastear a bandeira e cantar o hino nacional [motivo pelo qual estou entre a menor parcela da população tupiniquim que conhece todas as partes o hino, de trás para frente, até hoje] e tinha ganas de dedicar minha vida à defesa da pátria. Aliás, cheguei a alcançar o posto de oficial da Marinha brasileira, tornando-me aluno da Escola Naval no Rio de Janeiro. E foi aí que os problemas começaram.

Numa tarde ensolarada, estava eu fardadinho, ao lado de meus colegas aspirantes a tenente da Marinha, bradando o “Virumdum Piranga” a plenos pulmões. Era hábito, fazíamos isso todos os dias ao entardecer, após uma rotina incessante de preparação para a luta em um genuíno esforço patriótico. E foi nesse dia que olhei de rabo de olho para a minha direita, e notei lágrimas de emoção escorrendo pela face do aluno Bravo Catorze.

Lágrimas.

Naquele momento, tive uma epifania: Eu jamais conseguiria encarar a pátria como prioridade máxima, jamais aceitaria abandonar entes queridos para me aventurar em algum território estranho, combatendo inimigos invisíveis que – com ou sem razão – algum político declarou serem ameaçadores demoníacos da soberania nacional. Eu não amava a pátria mais do que a minha família que – essa sim – havia sempre me apoiado independentemente de credo, cor ou situação social. Céus, eu havia sido avaliado em todos os aspectos, e virado no avesso pelos médicos da Marinha Brasileira, só para receber a “honra” de morrer pelo país, caso isso se fizesse necessário. E muitos companheiros haviam sido descartados sem piedade pelas Armas, alguns míopes, outros intelectualmente inaptos, mas todos frustrados de seus sonhos segundo os critério de aço da Pátria Amada. Mas não eu, eu havia sido abençoado pela “perfeição” militar. A não ser pelo triste fato de que encarava tudo aquilo como um trabalho qualquer, regido por obrigações e direitos – diferente de Bravo Catorze e tantos outros colegas, que se derretiam por toda aquela ideologia que não era a minha.

Abandonei a vida militar, mesmo sob protesto de meus superiores. Eu buscava apenas um emprego, e não a absorção como mártir pelo Florão da América. E se por um lado creio que um emprego, uma carreira, deva sim ser motivada por paixão pelo que se faz, acredito também que isso não deva ocorrer sem retorno satisfatório para todos os envolvidos. Explico: Trabalhamos pelo salário no final do mês, pura e simplesmente, ou ainda por amor à atividade exercida. Dizer que trabalhamos feito escravos para melhorar a pátria, sem esperar nada em troca, é a mais pura demagogia – demagogia essa que parece estar na moda. É claro que esperamos retorno. É claro que desejamos receber nosso dinheirinho, necessário para a sobrevivência e para fazer um agrado a nossos entes queridos e a nós mesmos de vez em quando. É claro que pagamos nossos impostos – não para alimentar o crescimento nacional apenas, mas sim esperando que essa contribuição se reflita em saúde, educação e condições adequadas de trabalho para nós mesmos e outros. Ao meu ver, a relação cidadão/Estado é apenas mais uma parceria comercial, dessas tantas: Eu entro com meu dinheiro e minha mão-de-obra, especializada ou não, e os imponentes “donos do país” revertem estes esforços em infra-estrutura para que eu continue produzindo. Todo mundo fica feliz, e a sociedade cresce.

Não compreendo o Patriotismo em nenhuma de suas facetas – seja a emoção de ver a vitória da seleção brasileira na Copa, seja seu primo fanático e quase religioso, o ufanismo. E não limito esta opinião ao contexto tupiniquim: Não compreendo que o amor à pátria justifique richas entre nações, guerras, defesas de fronteiras imaginárias que um dia foram desenhadas em um pedaço de papel por outros patriotas. Considero-me um cidadão do Mundo, e não consigo ter mais consideração por um irmão brasileiro do que por um irmão argentino, somaliano ou japonês. Para mim, o fato de eu não poder viajar até a Eslováquia sem burocracia equivale a eu não poder ir até a pracinha da esquina e sentar sob uma árvore – direito que deveria ser assegurado não só aos brasileiros, como também a todo e qualquer rebento da Natureza. Sei perfeitamente que isso seria impossível por uma série de fatores práticos, mas não consigo deixar de crer que praias, florestas, cidades – tudo deveria ser visto como patrimônio da Humanidade, e como tal, passível de ser desfrutado igualmente por todos os seus integrantes.

Assim, declaro que não amo meu país – pelo menos não mais do que amo qualquer outro país – mesmo que este tenha cumprido até agora, de forma quase medíocre, o nosso acordo de benefício mútuo. Eu também cumpri, e não espero que meu país me ame em retorno. Espero apenas que o acordo se mantenha, enquanto for útil para ambas as partes. E dessa forma, espero poder continuar tendo recursos para amar quem acho digno de ser amado – família, amigos, o Mundo – já que não vejo propósito em amar um pedaço de pano colorido, um hino (por mais belo que seja) ou linhas traçadas sobre um mapa. E mesmo que você prefira exercer seu direito civil de discordar de mim, peço apenas que embase seus argumentos em algo além de “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”: O passarinho não tem CPF, não gorjeia em português e nem evita o espaço aéreo internacional quando alça vôo.

[Música sugerida: Lugar Nenhum, dos Titãs]


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Protocolo

Outro dia cometi o grave erro de desejar continuar apto a dirigir: Fui renovar minha Carteira Nacional de Habilitação. Cidadão precavido que sou, entrei na internet, me informei sobre os documentos que precisaria para a empreitada e – de posse de todos eles – me dirigi a um Poupa-Tempo, órgão governamental batizado segundo sua função prioritária: Poupar o tempo de vida de seus funcionários, que passam em média três quartos de sua carga horária diária fazendo absolutamente nada de útil – com o objetivo óbvio de evitar a morte prematura por estresse. O que, você achava que a idéia era poupar o seu tempo? Então continue lendo.

Burocrata seria um bicho engraçado, se não fosse trágico ou, mesmo sendo trágico, se não fosse responsável pela nossa tragédia. Um sujeito que passa a vida se especializando em complicar o incomplicável, em fazer-nos sentir pena de nós mesmos, só pode resultar de algum tipo de sarcasmo divino – não consigo pensar em outra razão para a existência desses tipinhos detestáveis. E descobri, naquela fatídica terça-feira, que um bom burocrata nada mais é do que um sádico de boutique, um inquisitor da idade média repaginado. E como tal, conhece as mais avançadas técnicas de tortura psicológica e se mostra capaz de nos fazer experimentar como ninguém todas as cinco fases do sofrimento, com uma eficiência sem igual – eficiência essa que termina aí, nesta classe profissional. E digo isso com conhecimento de causa: O diálogo reproduzido livremente abaixo foi protagonizado por este “paciente” autor e por um “competente” funcionário do Detran, responsável pelo guichê catorze do Poupa-Tempo aqui da cidade.

Burocrata 1: – Senhor Fabio, está faltando o comprovante de residência na cidade em que a CNH original foi emitida.

Eu: – Mas eu não moro mais lá há oito anos...

Burocrata 1: – Não importa. O senhor tem algum amigo/parente/vizinho/inimigo/conhecido/traficante de confiança que ainda reside na cidade?

Eu: – Tenho, mas...

Burocrata 1: – Serve.

1ª Fase: Negação

Eu: – Não é possível, você só pode estar brincando. Você quer que eu comprove residência em uma cidade na qual eu não moro, com um documento que não é meu, de um imóvel que eu nem sei onde fica?

Burocrata 1: – Isso mesmo, senhor. É protocolo.

Eu: – Mas isso não faz o menor sentido!

Burocrata 1: – Sinto muito, senhor. É protocolo.

2ª Fase: Raiva

Eu: – Olha, você está de sacanagem comigo, só pode.

Burocrata 1: – Não senhor. É o protoc...

Eu: – Escuta aqui, você pega o seu protocolo e faça o que bem entender com ele. Não dou a mínima para o protocolo. A MÍNIMA!

Burocrata 1: – Mas senhor, sem o protocolo isso aqui viraria uma bagunça.

Eu: – VIRARIA UMA BAGUNÇA?? VIRARIA??? VOCÊ PAROU PARA PENSAR NO QUE ESTÁ ME PEDINDO??? COMPROVANTE DE RESIDÊNCIA DE OUTRA PESSOA???

Burocrata 1: – Não vamos perder a compostura, senhor. É só o protocolo.

3º Fase: Barganha

Eu: – [Suspiro]. Deve haver uma outra maneira de resolvermos isso. Não posso trazer o documento em outra ocasião?

Burocrata 1: – Não pode, não senhor. O protocolo não permite.

Eu: – Ai, você de novo com essa de protocolo. Sério, você deve conseguir dar um jeitinho aí. Que tal uma cervejinha por minha conta depois do expediente? Pode dizer, quanto vale pra você esse maldito comprovante?

Burocrata 1: – Senhor, eu não bebo.

[Pensamento: Logo vi.]

4º Fase: Depressão

Eu: – Amigo, pelamordedeus, eu deveria estar trabalhando, agora, meu chefe só me deu hoje para resolver isso aqui. Se eu não conseguir renovar a CNH hoje, corro o risco de não dirigir nunca mais. Tenha dó...

Burocrata 1 [Me olhando complacente]: – Desculpe, senhor Fabio, não posso. O que é certo, é certo, né?

[Pensamento: Certo vai ser o cruzado de direita que eu vou dar na sua cara – quero ver você pronunciar “protocolo” sem os dois dentes da frente.]

5º Fase: Aceitação

Eu [Trêmulo de ódio, discando no celular]: – Alô, mãe? Tudo bem, mãe. Não, mãe. Tô, mãe. Mãe... MÃE! Eu preciso que você me passe um fax de um comprovante de residência aí de casa. Tá, mãe, desculpa ter gritado. Não, mãe, eu não estou irritado.


Voltei alguns dias depois, de posse do maldito comprovante de residência-em-que-eu-não-moro. Obviamente, fui atendido por outro funcionário, que apanhou todos os meus documentos, escolheu um aleatoriamente – a cópia do meu CPF – e o conferiu minuciosamente. Nem olhou para os demais.

Eu: – Ei, você não vai verificar o comprovante de residência?

Burocrata 2: – Ah, não precisa – é só protocolo.

Suspirei. E quando finalmente saí dali, só conseguia pensar que, no caso particular dos burocratas, deveríamos considerar um sexto estágio, a fase final, para o sofrimento:

6ª Fase: Homícidio




sexta-feira, 16 de julho de 2010

Deus ex medicina

Vocês já se deram conta de como somos seres de sorte, vivendo em tempos de tantos avanços médicos? Há dez ou vinte anos -- tempos medievais -- um diagnóstico HIV positivo era garantia de morte certa em alguns meses, no máximo um ano. Há sessenta, tínhamos a tuberculose, tomando centenas de vidas. Isso sem falar da quantidade de riscos desnecessários que corríamos por pura ignorância, como o fumo desenfreado dos anos cinquenta, o sexo desprotegido dos anos setenta, a carne vermelha de sempre...

Bons tempos, aqueles.

Sendo um cientista por profissão, tento não ser da opinião que “a ignorância é uma benção”. Mas pelo mesmo motivo, sinto-me inclinado a questionar toda e qualquer grande revolução acadêmica que traga conclusões na linha de “não faça isso que você sempre fez, ou você experimentará uma morte terrível, humilhante e dolorosa”. E se por um lado acredito que, em alguns casos, o Ceifador de fato visita com mais frequência aqueles que carregam determinados hábitos, também acho um saco qualquer discurso moralista da mídia que faça sentir-se um idiota quem come isso, fuma aquilo ou bebe sei lá o que. Bater com as botas, todos vamos um dia -- mas acho digno ao menos poder tentar escolher a cor, tamanho e número dos calçados.

Até tempos atrás, o café era o vilão. E antes dele, o tomate. Um fazia mal ao coração, o outro era o equivalente ao demônio em forma de fruta [sim, queridos, o tomate É uma fruta -- mas não desviemos do foco da discussão]. Tudo corroborado por forte embasamento científico, com centenas de milhares de dólares sendo destinados aos esforços de dedicados pesquisadores -- estes mártires e protetores do nosso bem estar. Aliás, o café e o tomate -- estes venenos -- são apenas dois dos criminosos presentes em alguma das tantas listas negras de tudo o que um cidadão consciente deveria evitar. Ah, como é fácil viver do “jeito certo”, nos dias de hoje!

Diferente da Religião -- a irmã mais velha e retrógrada da Medicina, e por isso mesmo sujeita a debates ferrenhos e opiniões contrárias de uns poucos -- o Grande Deus Branco não tem concorrência, e não admite oposição. Afinal, quem diabos se oporia a um resultado científico, apresentado por excelentíssimos doutores de jaleco, cujas vidas foram dedicadas ao estudo e às descobertas do certo e do errado? Ninguém em sã consciência, é claro. Apenas um ou outro gato pingado, sem amor pela vida ou admiração por este mundão lindo de Dr. Deus. Algum irresponsável, que por alguma razão inexplicável se recusa a ganhar algumas preciosas horas a mais de vida ao módico custo de nunca mais comer tomates ou nunca mais consumir uma xícara de café. Gente ignorante, essa, que recusa verdades canônicas ilustradas por gráficos e estatíticas acima de qualquer suspeita.

E já que gostamos tanto de números, vamos a alguns: Essa descoberta monumental que você vê no Jornal Nacional na hora do jantar, que o faz questionar cada grão de feijão no seu prato, foi possivelmente publicada em alguma conferência na Namíbia em um artigo composto por um punhado de autores. Destes, 4% incluem grandes catedráticos que assinaram o trabalho, mas provavelmente só leram o resumo e a conclusão. Outros 21% são doutorandos preocupados em obter o maior número possível de citações a fim de garantirem a aprovação de suas teses. Uns 27% são alunos de mestrado que passam no máximo duas horas diárias no laboratório, buscando resultados bombásticos que justificassem sua ida mais cedo para casa. E 53% consistem de alunos de graduação -- que de fato escreveram o artigo, mas estavam mais preocupados em terminar suas faculdades do que em salvar o mundo.

Este artigo revolucionário passou pela mão de dois ou três revisores (anônimos!), que sequer tinham conhecimento suficiente para palpitar sobre o tema. Mas ele foi aprovado, publicado, e caiu na mão de algum jornalista que -- novamente -- só leu a conclusão e não tinha conhecimento de causa. Jornalista este que, assim como muitos aqui, sequer foram capazes de notar que a soma de algumas das porcentagens apresentadas era diferente de 100% -- o que dirá de escrever uma reportagem realista sobre o assunto. E ainda que outros dez artigos publicados por outros autores desmintam o resultado bombástico, é bem possível que estes nunca vejam a luz da mídia – pelo simples fato de que o contador do ibope gira mais rápido por novidades desgraçadas do que pela consumação do que já se sabia antes.

Conheço gente que viveu mais de cem anos sem nunca tomar conhecimento de nenhum destes importantes ensinamentos da Medicina, e também gente saudável que morreu cedo -- atropelado por um caminhão ou engasgado com uma azeitona. Assim, desculpem-me os grandes doutores da Medicina, mas prefiro continuar comendo meu tomate -- mesmo que isso me leve ao túmulo mais cedo e sem direito de contestação. E no meu velório, desliguem a TV, sirvam café e fumem à vontade.

[Texto inspirado por twitts do pobre @o_colecionador , este coitado que não crê no Deus-Medicina. E que por isso mesmo, deverá viver mais -- e melhor -- que muitos dos discípulos da nova doutrina]


sexta-feira, 9 de julho de 2010

Expectativa e decepção

Não sei exatamente como começar este texto, e nem qual será o tom final. Sei apenas sobre o que quero escrever hoje, e também que não estou para piadinhas. Por isso, se você veio aqui procurando o humor ácido de sempre, talvez este seja um bom momento para parar a leitura e ir a um site de quadrinhos, ou assistir ao programa do Datena, ou a qualquer outro programa humorístico do gênero. Aliás, minto: Se você veio aqui esperando qualquer coisa, talvez seja o melhor dos motivos para prosseguir com a leitura. Vamos adiante.

Criar expectativas: Habilidade primordial do ser humano, nossa maior bênção e também nossa maior maldição. O ser humano é o único bicho do mundo que especializou-se, através de um longo e turbulento processo evolutivo, em esperar alguma coisa, sempre, de tudo e de todos. E talvez devamos a isso mesmo o “avançado” estágio em que se encontra a Humanidade. Invenções, descobertas tecnológicas e tudo o que chamamos de Ciência -- a jóia cultural máxima da nossa espécie -- só existem porque alguém, algum dia, criou alguma expectativa sobre alguma coisa, motivado por insatisfação extrema sobre a situação anterior à sua “Eureka!”. E até aí, tudo bem.

O problema é que este bichinho-homem, do qual nos orgulhamos tanto ser, tem uma insuportável mania de querer controlar até mesmo o incontrolável. E essa tal expectativa, que em algumas circunstâncias motivam tantos sucessos aclamáveis, acaba sendo a responsável única pela arqui-inimiga do indivíduo: a Decepção. Quem nunca se decepcionou com alguém, ou com alguma coisa, que atire a primeira pedra. Se não é uma entrevista de emprego que não teve retorno, é algum casinho que não ligou no dia seguinte. Somos perfeitamente capazes de nos chatearmos até mesmo ao acordar em um dia que deveria ter sido ensolarado -- e como poderia não ser!? -- mas teimou em amanhecer nublado. Guerras, brigas de casais, frustrações mil, relacionamentos que afundam -- tudo acontece porque alguém espera algo de alguém que falha em satisfazer. E não se engane: todos falhamos em satisfazer, em algum ponto.

Mas aí é que o caldo entorna: Nos decepcionamos quase com a mesma frequência com que respiramos. Mas ao invés de assumirmos as consequências de nossas próprias expectativas, muitas vezes mal direcionadas e fadadas ao fracasso, acabamos culpando o outro por, naquela situação específica, não ter feito aquilo que era a única coisa passível de ser feita, o óbvio ululante. Caro leitor, trago a você uma triste notícia: O responsável por suas decepções e expectativas insatisfeitas é, na imensa maioria dos casos, você. Você não deveria ter esperado tanto. Você não deveria ter vinculado a sua felicidade -- mesmo que momentânea -- àquele evento ou reação alheia completamente independente das suas vontades ou necessidades. Você, você, você.

Até o mais anti-social de nós é, em essência, um ser dependente de outros bichos-homens. E dessa forma, nascem os ídolos: Seres humanos intocáveis, desprovidos de falhas e incapazes de errar, trair ou frustrar. Gente como a gente, mas que insistimos em colocar em um pedestal, como se fossem instâncias melhor acabadas da espécie humana. E é extremamente comum nos depararmos com gente resmungando porque algum desses semi-deuses cometeu alguma barbaridade inominável, algum pecado máximo que somente um reles mortal cometeria. E se decepcionam, choram, clamam pela recuperação daquela imagem imaculada que tinham criado. Destes, tenho pena: Querido egocêntrico, bem feito. Ninguém mandou você achar que o mundo é um palquinho sob sua direção, em que os demais seres humanos atuam na sua peça, regidos pelo seu roteiro escrito a punho-de-ferro. A regra é cristalina: Espere menos dos outros, e você se decepcionará menos. Espere demais, e prepare-se para uma vida repleta de frustrações. Só não me venha chorar as pitangas depois, porque eu, que não sou ídolo nem melhor que você, vou te mandar encher a paciência de outro infeliz.

Sendo este um texto atípico, tomo a liberdade de terminá-lo de forma igualmente atípica -- com uma dica direcionada apenas ao leitor que faz esse tipinho “espero que você não me decepcione”: As pessoas não tem bola de cristal. Ninguém vem ao mundo com o objetivo único de adivinhar tudo aquilo que você espera, e mesmo que adivinhassem, não teriam nenhuma obrigação de concordar com os seus ideais -- que até onde sei, são tão bons e tão falhos quanto os meus próprios. E se você discorda de tudo o que está escrito aqui, te respeito -- porque EU não tinha nenhuma expectativa de que acontecesse de outra forma. Já você... bem, suponho que meus pensamentos sejam apenas mais um adendo à sua interminável lista de expectativas insatisfeitas. Beijos e boa sorte com o mundo lá fora -- você vai precisar.



sábado, 3 de julho de 2010

1984 açucarado

Sujeito de péssima memória que sou, guardo pouquíssimas lembranças da infância -- mas uma, em especial, me acompanha até hoje: Lembro-me nitidamente de que adorava o mar, e a principal razão era a sensação de liberdade que experimentava toda vez que me punha a boiar sobre as ondas, feito um pedaço de isopor velho. Mas além da liberdade, lembro-me do desespero incontido de minha mãe que, histérica, berrava para que eu tomasse cuidado para não ser tragado pela sorrateira correnteza.

Fast forward de 20 anos.

Democracia, a falácia predileta do povão. A idéia até que é promissora -- "poder para as massas" -- e é cultuada pela sociedade moderna como se fosse a última bolacha do pacote. Declarar-se um anti-democrata, ou mesmo levantar qualquer suspeita sobre a adequação do regime à realidade brasileira é, no mínimo, uma atitude suicida ou masoquista. É um convite à encheção de saco, extensível a todos os pseudo-intelectuais e chatos de plantão.

Mas quer saber? Nada disso importa: Não vivemos em uma democracia. E esta não é uma declaração política, nem uma provocação indireta aos filosófos de banco de praça. É apenas uma constatação prática -- não é possível fazer valer a opinião da maioria, se aquela maioria não tem opinião alguma, sobre absolutamente nada.

Vejam só como são as coisas: Sujeito acha o racismo um absurdo, mas aprova o sistema de cotas para negros nas Universidades. Vocifera contra qualquer tolhimento da liberdade individual, mas comemora como se fosse título da Libertadores uma lei anti-fumo que tolhe, entre outras coisas, o direito de escolha do dono do bar da esquina sobre quem é que frequenta o seu estabelecimento. Aplaude o orgulho gay e compra camisetinha regata com estampa de arco-íris, mas vomita asneiras como “meu filho Norberto, graçasaobomdeus, é pegador que só!”. E de noite, se esborracha no sofá para assistir o Big Brother estrelado por um preto, um bicha, uma lésbica, um pobre, um intelectual, uma loira e um não-sei-mais-o-que que estão lá tão somente para -- claro! -- estirpar os últimos resquícios de preconceito que ainda contaminam seus vizinhos que, coitados, são muito menos esclarecidos do que ele.

O ponto é que o zé povinho, já há tempos, é governado por uma moralidade que não é a sua própria. Vivemos em uma distopia orwelliana açucarada: Novos certos-e-errados são produzidos todos os dias, a toque de caixa, e são incorporados em nossa cultura através de jingles bonitinhos ou discursos eco-idiotas. E o povo aceita, acha lindo, age como se aquilo sempre tivesse estado lá. E ai de quem discordar -- subversivo, egoísta, reacionário, pecador! Da mesma forma que a Oceania sempre esteve em guerra contra a Lestásia, ninguém questiona, ninguém verifica, ninguém contraria -- porque contrariar é isolar-se, e isolar-se está fora de moda na Era do Twitter.

Acho irônico viver, em pleno século 21, em uma sociedade que me lembra meus sete anos, quando eu ainda boiava sobre as ondas. Em meio a um povo que goza de uma falsa sensação de liberdade, mas que não parece ter noção da sutil correnteza que os joga para lá e para cá. E que levanta a bandeira da opinião “própria” que lhe é incutida diariamente por propagandas de sabonete. A diferença é que eu, mesmo estando naquela época no auge da minha inocência, sabia da existência da maré e sabia que deveria manter minha posição para não ser tragado. Mas suponho que as profundezas da aceitação coletiva sejam muito mais sedutoras que as do oceano.