Parece que o tempo passa diferente conforme a
hora de partir chega. Você tenta aproveitar cada segundo daquele lugar que está deixando para trás, em uma tentativa quase desesperada de guardar na memória tudo o que não coube na mala. E se entristece por saber que não vai conseguir –
especialmente se você tem uma memória de uva passa, como eu. Não obstante você
tenta, se esforça para registrar o número de carros estacionados na rua, os rostos dos passantes que você sequer conhece, a sensação térmica de um dia
qualquer. Cheiros. Gostos. Sons. É como se, na iminência de carimbar o
passaporte, você se tornasse uma besta sinestésica e super-emotiva. Pura
idiotice, eu sei – mas uma idiotice inevitável que só entende quem está ou já
esteve prestes a deixar tudo (ou quase tudo) para trás.
Saudade é um troço traiçoeiro, que parece
que aperta mais quando você está prestes a ir embora do que quando você já foi.
Nos dias/horas que precedem a partida, você não consegue sair sequer para
comprar um pão sem pensar que aquela será a última vez que você visitará aquele
estabelecimento em muito tempo. Você passa por aquela árvore velha no caminho e
nota que as folhas jovens que pendem dos galhos não estarão mais lá quando
voltar. Será que aquele cachorro da rua de baixo continuará latindo pra mim
quando eu descer do ônibus que vem do aeroporto? Não sei. Será que o motorista
será o mesmo? Não faço idéia. E convenhamos, nenhum desses detalhes tem a menor
importância prática – eu provavelmente nem vou lembrar disso quando estiver
vindo para casa. A não ser por agora – agora, perceber cada detalhe parece a
coisa mais importante do mundo.
Mas não é só a saudade que nos corrói nesses
momentos – a incerteza também se torna uma companheira inconveniente. Porque
você não tem a menor idéia do que diabos o futuro te reserva a partir do minuto
em que você tira a chave da fechadura e sai mundo a fora, arrastando a mala
atrás de si. Você pode ser a pessoa mais organizada do mundo, e ter a plena
convicção de que cuidou de absolutamente todos os aspectos da viagem e que nada
pode dar errado. Mas pode, ô se pode. Será que eu peguei MESMO o passaporte?
Será que minha reserva de passagem foi registrada no sistema? Será que eu não
confundi a data da viagem? Será que meus anfitriões falam inglês? Será que vão
entender o MEU inglês? Será que eu vou achar a linha de trem que vai para o
hotel, e vou conseguir descer na estação certa – ou será que vou acabar de mala
e cuia em algum país bizarro, habitado por canibais devoradores de estrangeiros
desavisados? Não há como prever. Ah, você acha que nenhuma dessas preocupações
faz o menor sentido? Talvez não façam de fato – mas incerteza é isso: Uma
espécie de paranóia burra sem nenhum compromisso com a realidade.
Eu odeio viagens longas – acho que já deu
pra ter uma idéia a esse ponto. E no entanto, o fato de ser acometido por todo
tipo de neurose crônica que eventos desse tipo podem causar me faz achar que eu
sou um cara de sorte. Não nasci com o pé na estrada, e não tenho a menor
vocação para o nomadismo – e boa parte disso se deve a um fato muito simples:
Felicidade. Talvez uma felicidade circunstancial, até momentânea – que foge um
pouco daquela Felicidade poética e eterna perseguida pelos românticos nos
livros de cabeceira das solteironas – mas felicidade, ainda assim.
Aqui eu faço diferença – ou ao menos o aqui
me faz diferença. Aqui eu tenho meu lugar, minhas pessoas, meus sorrisos. Aqui
eu tenho uma vida inteira pela frente. Lá? Eu não sei o que eu tenho lá – e desconfio
de que, pelo menos por enquanto, eu não tenha nada. E é só por isso que sinto
essa tragicômica identificação com os participantes daquela brincadeira “Quer
trocar?” dos programas infantis matinais da década de oitenta, em que o cidadão
tinha que responder ‘sim’ ou ‘não’ sem saber o que estava sendo perguntado: “Você quer deixar tudo o que conquistou até agora
para trás, e trocar uma vida sólida e feliz, rodeado por gente que te ama ao seu
alcance, por um futuro incerto, em um lugar que você não conhece e sem certeza
de sucesso?” – “Siiiiiiiiim!”.
Estes últimos dias aqui – na minha casa, na
minha vida, no meu mundo – me ensinaram um novo significado para o conceito de
melancolia. Mas não foi só isso – aprendi também uma nova definição para essa
tal de Felicidade – essa coisa tão misteriosa que todo mundo persegue, mas
ninguém sabe definir direito o que é. Felicidade
é ter do que sentir saudades – assim, pura e simplesmente. Não é ser
reconhecido profissionalmente, não é ter dinheiro, não é rir de tudo o tempo
todo. Felicidade dói, às vezes – incomoda, perturba, te deixa amuado e até com
raiva. No mais, é tudo aquilo que os livros contam – e por isso, compreendo essa
busca frenética por ela que cada um de nós protagoniza todos os dias. E eu
tenho do que sentir saudades – tenho muito. Só espero que estes tesouros todos
que eu colecionei por estes meus anos continuem aqui quando eu voltar, em um
futuro tão próximo e ainda assim tão distante... que eu queria que fosse hoje.
So long, farewell auf Wiedersehen, goodbye – espero encontrá-los
aqui quando eu voltar. E nesse meio tempo, espero que vocês todos colecionem
saudades a rodo.
Vou ali.