No final de 2010, recebi de um leitor um texto para publicação no Paciência. "Pesado", pensei. Guardei e acabei não postando.
Hoje, relendo os escritos do rapaz, achei um desperdício não tê-lo postado ainda. Você pode conferir outros textos do autor (poesia) no aqui: Se, entretanto, porque, portanto, como...
Obrigado pela contribuição, G. O. Seu blog já está linkado no "Leio e recomendo".
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Ele
abre os olhos. A claridade que entra pela janela fere suas retinas, como se
estivesse pacientemente esperando pela oportunidade de ser a primeira a
saudá-lo da forma mais agressiva possível. "First blood", ele
pensa, enquanto sorri ironicamente -- um sorriso falso, quase imperceptível, de
canto de boca. Mais um dia pela frente. Mas antes disso, é preciso sair da cama
-- sua algoz e amante. E ela se utiliza de todas as suas artimanhas vis para
evitar que isso aconteça.
Relógio.
Se acostumando aos poucos à claridade açoitante, ele busca o relógio. O display
exibe os números em uma tonalidade de branco fria, indiferente: Um, cinco, dois
pontos, três, zero. "Só mais quatro horas para o anoitecer",
ele se reconforta. Nos últimos tempos, era no relógio que ele encontrava seu
leal companheiro -- o objeto havia se tornado seu derradeiro vínculo com a
realidade. Para ele, o tempo parecia passar de forma diferente, ao ponto de
tornar-se impossível manter uma noção mínima do passar das horas. Dia e noite,
eram as únicas coisas que ele reconhecia. Relógio e calendário -- ele precisava
de ambos para sentir-se mais humano. "Tudo passa", imaginava,
"até o tempo passa, mesmo que eu não perceba". E a cama
continuava a vencê-lo com uma diplomacia impecável.
Motivação.
Ele busca na memória qualquer resquício de obrigação que lhe sirva, mesmo que
contra a sua vontade, como pretexto para se levantar. O emprego com horário
flexível, outrora tão conveniente, é agora mais um de seus tantos antagonistas
invisíveis. Não, o trabalho não é o caminho -- e mesmo que fosse, sua
concentração seriamente debilitada não o permitiria dedicar-se às suas
obrigações profissionais por muito tempo. Um hobby, talvez? Ele se imagina
envolvido em inúmeras tarefas que outrora lhe dariam prazer -- a leitura, uma
cerveja com amigos, um bom bate-papo, a escrita -- mas nenhuma parece
convidativa agora. A cama parece abraçá-lo com garras invísiveis, que agem
sobre seu corpo inerte como uma droga paralisante.
"Drogas"
-- ele olha contemplativamente para a caixa azul e vermelha que jaz sobre o
criado-mudo. "Clomipramina", lê-se no rótulo. Ele pensa se a
motivação que procura não estaria ali, ao seu alcance, perdida entre as
cartelas do antidepressivo. "Um comprimido por dia, na hora do jantar"
-- as palavras da psiquiatra, proferidas uma semana antes, retornam à sua mente
como que com o único intuito de desencorajá-lo a recorrer à ajuda química.
"Pros diabos", ele pragueja, "não está funcionando, de
qualquer forma. Só mais quatro horas e já será hora do jantar e..."
"Quando
foi a última vez que comi?" Ele não se recordava. Fazendo um esforço
homérico, se lembra do sanduíche ingerido há quarenta e oito horas -- a última
vez em que sentiu fome. "A clomipramina vai abrir seu apetite"
-- novamente as palavras da sorridente psiquiatra retornam à sua memória. O
sorriso apagado retorna ao canto da boca, e ele se recorda das palavras de um
velho amigo: "A medicina é uma ciência medieval -- pura tentativa e
erro." Se dirigindo para a caixa sobre o criado-mudo, como se ela
fosse capaz de ler seus pensamentos, ele balbucia em um sussuro meramente
audível: "Erro."
Seu
companheiro, por outro lado, trabalha incesantemente. Um, seis, dois pontos,
dois, quatro. Ele reúne as energias acumuladas pela longa noite de sono -- como
pode sentir-se exausto, mesmo após dormir tanto? -- e se senta na cama. Um
suspiro de alívio se segue à pequena vitória. A cama, por sua vez, não se dá
por vencida -- e parece gritar para que ele se deite novamente. Um urro
hediondo, ele pensa, mas magnético: Basta que ele se deixe cair, basta que ele
pare de lutar contra o mundo, e tudo ficará bem. Mas ele sabe que não pode. E
de forma nada resoluta, ele arrasta as pernas -- primeiro a esquerda, depois a
direita -- e toca os pés no chão. Está de pé.
Enquanto
pensa no próximo passo, ele acende um cigarro de cravo -- o primeiro de muitos,
naquele dia. A fumaça que escorre para dentro de seus pulmões lhe traz um breve
bem estar -- que nem os comprimidos, nem o álcool, nem o descanso parecem ser
capazes de produzir sobre aquele corpo e mente abatidos. "Nem sempre
foi assim", ele recorda, "nem sempre eu fumei tanto".
Ele volta o olhar para o criado mudo, uma teceira vez, e completa mentalmente:
"E eu nem sempre precisei de comprimidos. Não até que eles
surgissem. Não até que eles me derrubassem."
Eles. Ele evitava de pensar neles,
crendo que sua sanidade dependia diretamente de sua capacidade de mantê-los
soterrados num canto escuro da memória -- lembranças de um pasado que nunca
poderia ter feito parte de sua história. Mas todos os dias eles
retornavam, mesmo que por alguns segundos, na forma de fantasmas que se
recusavam a ser exorcizados. E embora já tivessem partido há meses, o rastro de
destruição deixado nas ruínas do que ele havia sido um dia o impediam de
esquecer. Os cacos que ele tentava juntar ainda estavam ali -- lembretes da
pilhagem cruel protagonizada por aqueles monstros. E embora ele fosse ávido
entusiasta por quebra cabeças, não conseguia se divertir em tentar juntar suas
próprias peças. Não conseguia montar uma figura que sequer se aproximasse de um
ser humano. Relógio e caledário -- sua humanidade residia em seu relógio e
calendário.
Comida.
Ele decide que, com ou sem fome, não pode completar três dias consecutivos sem
comer qualquer coisa que seja. Olha pela janela e assiste os passantes, alheios
à batalha travada diariamente dentro daquele apartamento térreo mínimo. Assiste
e os reconhece como ameaças -- o mundo exterior lhe parece particularmente
assustador há dias. Mesmo assim, ele decide sair. "Um pouco de
normalidade", ele pensa. "Sair, ver gente, comer. Vai me fazer
bem." Ele se dirige à porta, gira titubeantemente a chave e sai.
O
caminho até o restaurante é longo -- ou lhe parece interminavelmente longo. A
claridade e a brisa morna do entardecer o fazem sentir-se deslocado, como se
ele não fizesse parte daquele cenário. Mas ele caminha. As vozes dos passantes
parecem proferir palavras alienígenas que ele não compreende -- como se tivesse
desaprendido seu próprio idioma. Seus olhos voltados ao chão, sempre, como se
estivessem procurando alguma coisa -- talvez sua motivação perdida. Mas ele
sabia que não a encontraria -- pois sua motivação não havia caído de seu bolso
como um molho de chaves, não; havia sido arrebatada de seu íntimo. Arrebatada
por eles.
O
chacoalhar da cabeça para dissipar aquelas lembranças coincide com a chegada ao
restaurante. Ele se decepciona ao sentar-se na mesa, abocanhar o sanduíche e
notar que continua sem apetite algum. "Meu corpo está desistindo",
ele teme. Mas ele não desiste, não assim fácil: devora, mesmo sem fome, metade
do sanduíche. E retorna para casa pelo mesmo caminho, exercendo a cada passada
o mesmo esforço, carregando a outra metade do lanche -- que, ele espera, será
bem vinda mais tarde. A bituca de mais um cigarro atinge a calçada irregular
que ele deixa para trás quando entra finalmente no apartamento, sentindo uma
desconfortável sensação de segurança por estar novamente em casa. Ao fechar a
porta, ele se depara com sua carrasca irrepudiável: A cama.
As
batalhas insignificantes, as lembranças torturantes, as empreitadas
corriqueiras -- que para ele se faziam conquistas épicas -- são suficientes
para exaurir o resquício de energia que ele precisaria para resistir ao olhar
convidativo daquela cama. E ela chama, se insinua, o convida. E ele cede, enfim
-- mas não sem antes, em um derradeiro ato de bravura, apertar o play do
aparelho de som. A música ecoa através do imóvel e entra por seus ouvidos,
reproduzindo um efeito semelhante ao do cigarro de cravo encaixado entre seus
dedos. Enquanto Johnny Van Zant canta no rádio, ele se esparrama no colchão --
sentindo como se seu corpo tivesse finalmente encontrado seu lugar no mundo,
após tanta procura. A noite cai, e ele rompe a inércia -- somente para esticar
o braço e apanhar o comprimido que, ele sabe, não fará a menor diferença para
seu estado de espírito. O comprimido desce pelo esôfago, seguido por outra
rajada de fumaça doce. Com seu cinzeiro, seu calendário e seu relógio ao lado,
ele nota a lua cheia através das barras da janela. E quando finalmente a
clomipramina começa a relaxar seus músculos, os sonhos -- ou seriam
alucinações? -- começam a se misturar com as palavras que dançam pelo quarto
antes de encontrarem seus tímpanos:
"But
I'm not home, I'm not lost
Still
holdin' on to what I got
Ain't much
left
No there's
so much that's been stolen
I guess I've
lost everything I've had
But I'm not
dead, at least not yet
Still alone,
still alive, still unbroken"
E
ele fecha os olhos.
Autor:
G.O.