O sujeito no farol se aproxima da sua janela, que nem deveria estar aberta – mas está por alguma razão desconhecida – e aperta o “play” no discurso ensaiado: “Boa tarde, senhor, eu podia tá matando, eu podia tá robando, mas tô aqui pedindo uma ajuda, não como há vários dias, meu filho tá doente, minha mulher me bate, meu time tá na segunda divisão, meu cachorro foi embora...” etc, etc, etc. Quem sente pena de exemplares como esse ainda não se deu conta desta mutação genética, fruto de seleção natural às avessas, que se abateu sobre a espécie humana sei-lá-quando: Você acaba de se deparar com um Coitadinho.
Outrora raros, os coitadinhos parecem estar se proliferando de forma espantosa no reino animal. Seu peculiar apetite pela auto-piedade, antes reprimido a todo custo pelo bom senso geral e pelo amor próprio, tem se tornado abundante na natureza mediante a iniciativas filantrópicas aos moldes de “Criança Esperança” e programas sensacionalistas como o da Sônia Abraão – aquela criatura de ainda outra espécie que ocupa o topo da cadeia alimentar arquitetada sobre as desgraceiras cotidianas. Assim, se em outros tempos a condição de “coitadinho” era tida como ofensa grave, hoje é motivo de orgulho e até objetivo de vida para alguns menos invejados pobres clássicos. Afinal, o pobre clássico não tem nada além de contas a pagar – enquanto o Coitadinho se esbalda em compadecimento alheio e comoção social por sua triste localização geográfica: O fundo do poço.
Existem diversos subgêneros de Coitadinhos, sendo alguns dos mais tradicionais: O Coitadinho Financeiro, destituído de orçamento suficiente para sustentar um estilo de vida minimamente aceitável [que para ele, inclui antena parabólica no barraco, carro novo na garagem e viagens periódicas ao litoral farofeiro]; o Coitadinho Emocional, destituído da tampa de sua panela, o Yin para o seu Yang [mas que prefere choramingar por sua solidão excruciante ao invés de procurar se fazer interessante para possíveis pretendentes]; o Coitadinho Mal-Compreendido, destituído de sorte na vida e reconhecimento por seus talentos tão evidentes [estes não conseguem compreender, por exemplo, porque cargas d’água ninguém os contrata como comediante de stand-up ou apresentador de show de auditório]. E todos se alimentam das mesmas coisas – olhares complacentes, lágrimas compadecidas e aquele balançar de cabeça que todos nós proferimos quando nos deparamos com uma situação tão injusta quanto a caça injustificada aos pandas chineses. Dessa forma, o sentimentalismo coletivo que se abateu sobre a sociedade neste século faz do mundo moderno o habitat perfeito para estes bichinhos tão infelizes e mal-amados. Resta saber qual será o próximo evento de destruição em massa que há de nos salvar deles.
Costumo ser defensor ferrenho do direito à existência de qualquer espécie que venha a ter sucesso evolutivo – mesmo os pernilongos, cuja função real na natureza ainda me é uma incógnita – mas não consigo deixar de temer pelo futuro do planeta, caso os Coitadinhos se estabeleçam como espécie predominante. Dessa forma, resisto ainda à doce tentação de reclamar minha cota de piedade alheia – resisto, portanto, ao martírio recompensador de me tornar um Coitadinho. Passo os dias a moderar choramingos, reservar lágrimas, evitar a pena – mesmo quando estas se fazem facilitadores químicos para suportar a dura realidade que todos enfrentamos diariamente lá fora. Da mesma forma, não dou esmolas, não poupo choques de realidade quando se fazem necessários, não cedo ombro a quem não se ajuda. E penso que, agindo assim, estarei contribuindo para a extinção dessa especiezinha sem-vergonha de parasitas emocionais. Porque dos pernilongos, meu inseticida já dá conta.
[Pauta inspirada por @rafapedro – se não gostarem (Coitadinho ou não), choraminguem com ela]
AAahhh Fabio Piva... coitadinho né...
ResponderExcluirPois não é quando se para pra pensar nisso que nos damos conta que essa espécie vem se alastrando como rastilho de pólvora... e ainda não inventaram um "coitadicida" eficaz...
Beijo!!
Edi
Todos os dias eu vou pro estágio de trem. Não sei como funciona em outros estados, mas, pelo menos aqui no RJ, é certo: Toda sexta-feira (principalmente em início de mês) entram diversos desses coitados pedindo esmola. A maioria usa o nome de deus pra emocionar a plateia, outros dizem que estão fazendo o bem pra uma obra de assistência a drogados e por aí vai.
ResponderExcluirNunca os dei 1 centavo e não pretendo fazê-lo jamais. Não nasci pra fomentar a preguiça de ninguém...
Eu podia tá matando, podia tá roubando, estuprando e tantas outras coisas, mas tô aqui lendo esse texto e aplaudindo.
ResponderExcluirVale mto mais a pena a gente se ocupar em algo útil como ler um bom texto como o acima, do que se acomodar no papel de vítima e esperar a piedade alheia.
O termo "coitadinha" me remete ao mais baixo grau de humilhação. Não gosto deste termo e menos ainda de quem se faz de um (coitadinho). Vc sabe o quanto admiro teus escritos e o quanto quero ser como voce quando "crescer". Parabéns meu amigo...vc continua uma "fera". Clap,clap, clap pra vc
ResponderExcluirNao dou esmolas, mas outro dia nao sei pq, havia um casal de hippies num sinal, ela tinha uma flor nos cabelos e um machucado no rosto, ele tinha o rosto muito vermelho pelo forte sol que tem feito aqui no nosso Condado. Ela sentada sob a sombra que ele em pe fazia sobre ela e a placa que ele segurava (aqui nao se pode pedir com palavras, esmolas, por isso eles seguram uma placa fazendo isto), dizia: "Somos um casal que estamos em dificuldade e temos sede" . Entao pus 1 dollar entre meus dedos , estiquei o braco e com o carro em movimento segui, ela levantou-se sabendo que era p/ eles, tirou a flor dos cabelos e num gesto super rapido fizemos a troca, ganhei a flor dos cabelos dela e ela levou o dinheiro. Nao sei pq fui embora feliz com aquela florzinha murcha!!!
ResponderExcluirAuto-piedade é meio que um vício, ao perceber que se consegue atenção e uma certa "admiração" por continuar vivendo mesmo sendo desafortunado, a pessoa passa a usar esse artifício constantemente.
ResponderExcluirMas é também uma armadilha: quem vive de coitadismo nunca cresce.
Ainda sim, creio que todos nós de vez em quando fazemos um pouco disso porque ninguém e de ferro e um colinho, um abracinho com alguém dizendo "vai ficar tudo bem" é muito bom.
Sem falar que um problema muito comum é a falta de empatia. Com todo esse individualismo é comum não se colocar no lugar do outro. Então até pra exigir um pouco mais de respeito e colaboração de vez em quando temos que mostrar como a vida tá árdua.
Mais um comment imenso hehe, não tenho jeito =p
Mais um ótimo texto e assunto pra se discutir!
Não entro na questão da esmola-dinheiro, até porque uma boa parte dos que pedem esse tipo de esmola são vítimas, não coitadinhos.
ResponderExcluirEu tenho problema com os coitadinhos emocionais; os viciados em esmola afetiva.
abs.
Não dou esmolas, acredito que esse seja um ato de " Compra de Consciência"....aplausos ao texto....como sempre!
ResponderExcluirbeijos