Era uma vez um conto que não sabia como ser começado. Seu autor, imerso que estava em tristeza e desilusão plenas, havia abandonado a criatividade, a vontade de escrever, a esperança. Havia, assim, abandonado a pena. O conto, que não tinha nada com isso, não se fez de rogado: Teimoso como o próprio autor, instalou-se no fundo de sua alma esperou. Esperou quieto, quase imperceptível – como uma idéia que morreria ali, inerte, sem nunca ser consolidada. Esperou pelo menor descuido do autor e um dia, à luz da primeira oportunidade, escapou. Escapou e escreveu, arriscando o desperdício vão de seus derradeiros suspiros de conto, o que seria o mais óbvio dos princípios, quase um clichê descartável. Escreveu apenas isso: “Era uma vez”.
O autor assustou-se com aquela manifestação súbita de sua mão dormente, que quase como que por conta própria, escrevia aquelas palavras insossas: “Era uma vez”. Observou o papel manchado de nanquim – seu papel, seu nanquim, mas não suas palavras – e decidiu continuar, apenas por brincadeira. Afinal, ele não tinha nada mais a perder, e na pior das hipóteses, a empreitada acabaria como tantas outras de suas frustrações recentes – na lixeira, transformada em uma bolinha de papel amassado. E o autor tentou, e como tentou – mas não conseguiu esboçar nem uma palavra sequer além daquelas que jaziam ali, como que clamando por continuidade. E foi então que, prestes a desistir do conto, o autor olhou pela janela. Olhou pela janela e viu seu jardim.
Aliás, jardim vírgula – aquilo já não era mais um jardim havia muito tempo. Era um pedaço ínfimo de terra árida, onde não crescia mais nada desde a Grande Tempestade. Nada mais brotaria ali – nem mesmo a mais resistente das plantas. Nada, imaginava o autor, a não ser aquelas quatro flores de que ele nunca havia se dado conta. “Mas eu não plantei isso”, pensava incrédulo, “eu nem mesmo reguei nada disso, como pode?”. Mas elas estavam ali, imponentes, lindas, firmes. Muito mais firmes do que ele, pensava, e de uma beleza que encantaria mesmo aqueles que não tem amor às flores. E o autor, quieto, apenas observou.
A primeira flor que saltou aos seus desconfiados olhos foi a Margarida – linda em seu contraste entre o branco e o amarelo, dona de si e livre, clássica e elegante por excelência. Bálsamo de Myddvai, herança da Dama do Lago de Llyn-y-Van-Vach para a humanidade e capaz de restaurar nos moribundos a esperança de viver, aquela flor tão majestosamente delicada. “Bem-me-quer, mal-me-quer” – o autor se lembrava do descaso com que alguns apaixonados despetalavam as margaridas, sempre sob o pretexto de provar seu amor verdadeiro um ao outro. E por isso, sentiu compaixão – uma compaixão identificada, pois ele próprio se sentia despetalado por razões tão inverossimilmente nobres quanto aquela. “Bálsamo”, pensou ele, que já se sentia menos ferido apenas por ter vislumbrado aquela presença angelical através da janela. Aquela margarida era bálsamo.
Enquanto admirava a graça elegante da margarida, notou uma sedutora Violeta – que com suas cores fortes e contrastes marcantes, parecia não se importar com os olhares pudicos dos amantes das flores mais clássicas. “Sou roxa, sou provocante, e daí?”, estava estampado ali, naquela violeta cheia de vida – uma vida que o autor sequer se lembrava que existia no mundo. E ao notar aquela flor atrevida no canteiro, compreendeu de imediato porque Zeus a havia escolhido como honraria para a última morada de sua amante proibida Io, a humana que havia roubado seu coração. “Audácia”, pensou o tímido autor. Aquela violeta era audácia.
E o rapaz não teria talvez tirado os olhos da Margarida e da Violeta, não fosse a presença daquela Rosa – linda em sua exuberância provocativa, como se soubesse de sua ligação com Clóris, a ninfa das flores e última amante de Zéfiro, o vento-oeste. As rosas, sabia o autor, eram presenteadas pelos amantes como símbolos da paixão às amadas desde que o mundo era mundo. Não há dama viva, diz a lenda, que resista ao amante acompanhado de um ramalhete de rosas. E mesmo sabendo que as rosas traziam espinhos, entendia que eram espinhos de amor. Porque o amor dói, fere, e também tem espinhos. “Poesia”, pensou o autor. Aquela rosa não era senão poesia.
A última flor que se erguia sobre a aridez do jardim através daquela janela era um Lírio. Branco, puro, modesto – a singeleza que emanava daquele belo lírio só podia ser uma das definições de felicidade, imaginava o autor. Fruto do amor maternal de Juno por Hércules, que abandonado para morrer no campo por sua própria progenitora, encontrara no leite da Deusa-Mãe forças para continuar vivendo. Forças e lírios – conseqüências do leite e da fertilidade de Juno. E aquele Lírio em particular fazia, parecia ao autor, jus à crença de que aquelas flores são capazes de reconciliar até mesmo os mais feridos dos amantes – era um Lírio como nenhum outro. “Lealdade”, imaginou em seu íntimo. Aquele lírio só poderia ser lealdade.
E o autor passou horas a admirar o seu jardim – sim! Aquele pedacinho de terra morta era um jardim, enfim! – que perseverava mesmo sem cuidados ou chances de existir. E admirou a persistência daquelas quatro integrantes tão viçosas, que haviam teimado em crescer ali mesmo sem que ele as tivesse plantado. E pensou que, se mesmo em condições tão adversas aqueles delicados seres conseguiam se fazer assim tão belos, ele também conseguiria, precisava ser capaz. Ele devia isso às flores, as companheiras que o assistiam do outro lado janela. E então ele se lembrou do conto, aquele conto que havia estado à sua frente, intocado, durante todo o episódio das flores. Voltou os olhos para a folha de papel vazia, a não ser por aquelas três solitárias palavras: “Era uma vez”. E se pôs a escrever.
E escreveu, escreveu como se nada mais importasse. Escreveu aquele que talvez fosse seu texto mais longo, mais difícil, mais cansativo. Escreveu e, quando já se aproximava do final, quando já estava exausto e sem idéias, quando achava que não conseguiria concluir o que havia começado, olhou mais uma vez pela janela. E foi somente então que o autor percebeu uma quinta flor ali – machucada, quase morta, mas ainda lutando por existir naquele jardim. Era um broto de Amor-Perfeito, talvez a mais perseverante das flores que ali estavam.
“Ah, sim!”, o autor agora se lembrava. Aquilo não era um broto de Amor-Perfeito, eram os resquícios de uma frondosa flor que ele já conhecia. Aquela flor não havia brotado após a Tempestade, não. Ela não era como as outras. Ela havia estado ali sempre, havia resistido à Tempestade, a pior das tempestades. Um broto triste, agora sem flores, mas antes de tudo vivo. E resistia, inexplicavelmente resistia. “Volte pra mim”, pensou o autor. Aquela flor representava o “Volte pra mim”, um pedido desesperado de um amante que havia perdido a razão, e por isso perdido a razão de sua existência. E o Amor-Perfeito sempre havia sido a flor predileta do autor que, ao vê-la ali do outro lado da janela – sofrendo, ferida, mas persistindo – chorou. Chorou pelos ferimentos da flor – queria curá-los todos, todos! – mas sorriu por ela ainda se fazer presente. E soube então o que Homero pretendia quando dizia que estas lindas, as mais lindas das flores, costumavam ser buscadas antigamente para a superação da ira: O filósofo provavelmente já havia notado que elas resistiam às tempestades. “As mais cruéis das tempestades”, pensou o autor, e a mais linda das flores. E ela resistia, apenas resistia, recusando-se a deixar o mundo antes da hora – como aquele conto.
E foi só então que o autor percebeu o que era assim, tão óbvio desde o princípio. Aquela folha de papel era somente isso: Uma folha de papel manchada de nanquim. O conto, aquele conto que havia se recusado a desaparecer antes de existir, já estava escrito mesmo antes daquele “Era uma vez”. O conto se fazia presente ali, do outro lado da janela. Eram as flores, “o conto eram as flores!”, pensou o autor – aquelas cinco flores. E percebeu que pouco importava o que estivesse escrito sobre aquelas linhas, pouco importava como terminaria a história, pouco importava se o resultado seria aclamado pela crítica ou se seria uma de suas piores obras literárias. E em especial, pouco importava o que ele escreveria no final. E assim, o autor redigiu ali as palavras que havia escolhido para concluir – não com uma lição de vida, nem com uma reviravolta impressionante. Terminou como sabia que deveria terminar – tinha tanta certeza! – e como tantas histórias já haviam se encerrado antes. Terminou com palavras óbvias, tão óbvias como as que haviam brotado no papel contra a sua vontade quando ainda nem eram suas. Terminou da melhor forma que pôde, e enquanto escrevia aquelas derradeiras passagens, experimentou uma segurança que até então nunca havia experimentado ao concluir nenhuma de suas obras. E assim, o autor suspirou profundamente, um suspiro como nenhum outro, e escreveu ali, na última linha do papel: “E viveram felizes para sempre”.
[27/08/2010]
[Não -- o Paciência Negativa não se tornou um blog de textos meigos. Este primeiro (talvez último) conto não reflete as crônicas sarcásticas de sempre, e não obstante foi o texto escolhido para o retorno do blog. Por que? Porque eu quis. Semana que vem voltamos com a programação normal de textos resmungões.]
PQp Fabio, nunca imaginei que fosse verter lágrimas por ler algum texto aqui no Paciência, nem imaginava que vc conseguiria escrever algo assim tão tocante... a janela, o jardim, as flores...
ResponderExcluirFaltam-me as palavras...
Beijo
Edilene
http://devaneiopulsante.blogspot.com
Fazia tanto tempo que um texto que não fosse uma poesia fazia meu coração palpitar feliz assim. Um sentimento comparado ao inicio de uma avassaladora paixão ou um grande amor.
ResponderExcluirQue emoção gostosa e feliz ao ler essas palavras que aos olhos de quem um dia já amou, despertam a esperança de que o futuro ainda possa existir sim.
É um texto que não vou cansar nunca de reler e com certeza sempre será como se fosse a primeira vez. Com a mesma emoção e lágrimas nos olhos.
Espero que ele faça feliz os olhos e almas de quem mais o ler, como fez a mim...
É não deu para não comentar, no meio do texto eu já estava chorando...incrível Fá...estou sem palavras.
ResponderExcluirParabéns!
Beijos.
Lindo texto. Parabéns.
ResponderExcluirEnquanto lia, fiquei pensando nas pessoas que não têm nem comida na mesa direito e que mesmo assim não perdem a vontade de viver. São como essas suas flores aí...
Beijo, continue escrevendo sempre.
Quem escreve bem, escreve bem sempre (falhas exceções não contam). Algumas vezes para fazer rir, outras pensar. Mesmo quando escreve sem pretensão, mesmo quando escreve simplesmente para expor uma idéia, ou quando não a expõe. Há textos que começam quando terminam... e este é um deles.
ResponderExcluirParabéns.
Parabéns =D o texto está muito bom... Good Good!!!
ResponderExcluirAs vezes sinto falta do meu blog... mas com a faculdade e tal acabei deixando ele de lado e desativei... quem sabe eu volte a postar...
Tenho muitos textos no papel que nunca consegui passar pro virtual!!
Já sou super leitora do blog com certeza!!
E se vc faz isso com gosto, jamais deixe de escrever...
Beijocas!!!
@for_cherry - (Carolina Maciel)
Eu não chorei. Eu permaneci com um sorriso bobo nos lábios, enxergando cada uma das suas flores e sabendo exatamente o que elas causam.
ResponderExcluirMas meu sorriso se abriu muito mais quando cheguei no Amor-Perfeito. Me encheu de felicidade saber que uma flor tão frágil resistiu bravamente a todas as tempestades...e que a esperança da Margarida não foi em vão.
Beijo enorme, meu amigo querido.
Mg
As palavras sumiram. Nada sai. Emudeci. Me surpreendi. Falar o que ? Simplesmente me aventurei no teu jardim e senti a emoção até o fim. Parabéns
ResponderExcluirQue texto maravilhoso, Fabio...
ResponderExcluiré incrível como aprendemos muito ao observar detalhes singelos da natureza, ou também ao observar a inocência de uma criança.
É muito fácil a gente se perder nos próprios sentimentos. E há sentimentos destrutivos que vão nos afundando e se não prestarmos atenção ficamos tão no fundo do poço que é difícil ter forças pra voltar.
E são nesses pequenos detalhes que encontramos força, seja ao observar um animal todo quebrado que luta por sua sobrevivência ou até as flores como no seu texto, que sempre foram vistas como belas e frágeis mas que podem nos surpreender com tamanha força.
Assim como a Mercedes, a emoção veio forte em mim ao ler a parte do amor-perfeito. Mas eu chorei sim, sou chorona, não tem jeito =p
Oi. Amo seus textos. Adorei ver vc aqui de novo. Parabéns!! Mais uma vez um texto honesto, claro e agradável .
ResponderExcluirLindo. Incrível. Não haveria texto melhor pra o retorno das férias. Nada além de parabéns.
ResponderExcluirSe as flores estão lá é porque o autor as regou em algum momento, pode ter sido sem perceber, às vezes até mesmo com uma lágrima... E se o amor-perfeito sobreviveu à tempestade é porque foi muito bem plantado e cuidado antes dela. Se o amor-perfeito ainda está ai, mesmo triste e sem flores, é porque embaixo da terra as raizes estão firmes e fortes, somente esperando o autor voltar a regá-la para que ela volte a ser a frondosa flor que ele conheceu.
ResponderExcluirMuita sensibilidade.
ResponderExcluirgenial
Gostei !!!
ResponderExcluirÀs vezes da tristeza e das lágrimas sai a docilidade dos sentimentos mais aflorados.
ResponderExcluirAdorei o conto, parabéns!
Se puder, visite meu blog:
http://escrevoparaviver.blogspot.com/