Eu queria; eu
juro que eu queria.
Queria ser
capaz de dormir, de descansar por essas duas horas que tenho antes que a carona
para o aeroporto chegue – mas não consigo. Não consigo pregar os olhos, não
consigo esvaziar a cabeça. Não consigo deixar pra lá os problemas que me povoam
a mente – a dor da decepção por saber o que eu sei, a dor da dúvida por não
saber o que desconheço. E dói, ah como dói, não conseguir aceitar a
falibilidade desta raça incompleta a que pertenço, em que a nobreza, a lealdade
e a honestidade são tratadas como comodities – apenas moedas de troca utilizadas
para adquirir pessoas como se fossem propriedades em um tabuleiro de Banco
Imobiliário; propriedades adquiridas não por mérito do “comprador”, mas sim por
pura estratégia – aquisições motivadas pelo intuito de privar outros jogadores
de ostentá-las, uma espécie de “eu tenho, você não tem”. Não consigo
compreender as regas do jogo – ou melhor, até as compreendo, mas não vejo
propósito em me fazer adversário à altura neste jogo tão cruelmente infantil
que são as relações humanas. Eu queria, eu juro que eu queria. Mas não consigo.
Eu queria ser
capaz de relaxar ao som da chuva que me acompanha enquanto escrevo estas linhas
nesta madrugada de segunda-feira. Mas os pingos que caem lá fora me remetem às
lágrimas que eu conheço bem, lágrimas que eu já estou cansado de derramar e que
já me conformei em não colher de volta. Lágrimas por amigos, confidentes,
conselheiros, que exercitaram a divina dádiva do livre-arbítrio para se
converterem em aliados de quem escolheu a posição de adversário político em uma
guerra fria da qual eu, particularmente, escolhi não participar. E que preferiram
abandonar a sensatez da neutralidade sobre um conflito particular – que sequer
deveria existir em primeiro lugar – para se tornarem casualidades de uma
batalha em que não haverá vencedor. Eu queria, ah, como eu queria. Mas não
posso.
Eu adoraria
receber de volta o mesmo carinho, a mesma atenção, o mesmo cuidado que dediquei
por todos estes meus poucos (?) anos de existência a meus “bons” amigos – ou ao
menos gostaria de nunca precisar tê-los de volta. Mas minha natureza falha de
bicho-gente me faz fraco, me faz refém do apego àqueles com quem convivi por
anos, com quem partilhei segredos, experiências, momento difíceis e alegres – mas
que, para a minha surpresa de criança grande, não se mostram reféns dos mesmo
sentimentos que eu.
Eu queria viver
em um mundo diferente deste aqui. Queria viver em um mundo em que eu fosse mais
como os outros, ou em que os outros fossem mais como eu. Uma terra em que se
desse mais valor ao amor e à amizade – ou em que eu fosse capaz de valorizá-los
menos. Um mundo em que as ações significassem mais do que as palavras
sussurradas ao pé-do-ouvido após reuniões secretas. Um mundo povoado por seres
mais atentos, que soubessem distinguir a boa intenção genuína do veneno
administrado em doses açucaradas por um conta-gotas disfarçado em compaixão. Eu
queria – ninguém pode me culpar por querer.
Queria que o eloqüente não tivesse mais voz que o calado. Queria que o divertido não fosse
mais aceito que o recluso. Queria que o cinzento fosse tão legítimo quanto o
preto e o branco. Queria que o sorridente não fosse mais aclamado que o triste,
e que o certo e o errado não fossem julgados como valores absolutos por quem
não conhece a história por completo.
É... eu queria.
Mas eu sou apenas um louco desvairado que escreve textos senis, mais uma dessas
pobres almas que se perderam em algum momento no passado quando se ergueram e
disseram “não mais”. E que como tal, é digna de pena – mas não de defesa ou
opinião próprias. E que mesmo não apresentando antecedentes criminais, se vê
sentado sem advogado no banco dos réus de um tribunal manipulável, sob o
martelo de um juiz que não se preocupa em sequer conhecer os fatos antes de
aplicar a sentença em um julgamento por um crime que nunca existiu. E se tentar
aprender com os próprios erros me faz insano, só me resta ser declararado
culpado por todas as acusações.
Eu queria
querer ter feito tudo diferente – adoraria preferir ter me escondido no
conforto das aparências. Mas no auge da minha loucura, o arrependimento se faz
ausente. Eu queria querer, juro que queria. Mas isso – disso estou convicto –
isso eu não quero.