sexta-feira, 27 de julho de 2012

Projeto Dóitxe-lândia: Entrada 1 - Idioma


Este texto é a transcrição da minha primeira entrada no Diário Exploratório de Colonização: Projeto Dóitxe-lândia. Dóitxe-lândia, a terra recém-descoberta, é o nome que a tripulação usa atualmente para se referir à área de interesse – uma livre-adaptação da palavra local “Deutschland” que, até onde pudemos verificar, apresenta significado local próximo de “centro do mundo” ou “berço da melhor cultura do planeta”. Um novo título será outorgado em breve pelo Conselho de Bordo, mais inteligível para os cidadãos do Mundo Moderno.

Vamos aos fatos.

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[Diário de bordo, data estelar 26/07/2012 d.C. – dia 146 pré-holocausto-Maia]

À Vossa Alteza Dilma “Rosa da Bulgária” Rousseff,

Hoje faz um ano desde nossa partida do Berço Tupiniquim rumo à terra prometida. Digo-lhe no dia de hoje, com segurança, que nosso precursor Cristovão Colombo – descobridor da nossa amada América (salve, salve!) – era nada mais que uma menininha facilmente impressionável. Esta nova terra Dóitxe-lândia, essa sim, é de fato uma terra estranha, povoada por indígenas exóticos com hábitos e língua peculiarmente perturbadores.

A população local parece indubitavelmente selvagem e, no entanto, mostram-se extremamente protecionistas quanto à sua cultura – resistindo bravamente à qualquer incursão exploratória de aventureiros provindos de culturas mais desenvolvidas. O maior exemplo disso talvez resida na manutenção teimosa do idioma local – as tribos aqui mantém-se fiéis ao Deutsch [Nota do capitão: “Dóitxe”, livre tradução], uma técnica de comunicação essencialmente gutural, rica em grunhidos ameaçadores e vernáculos grotescamente longos. Nossa teoria é a de que a agressividade única alcançada por este peculiar discurso teve papel fundamental na sobrevivência da espécie Dóitxe; acreditamos que muitos dos elementos incorporados a esta língua são adaptativas e servem ao propósito de “mecanismos de defesa”, impingido grande temor a exploradores precursores menos audaciosos.

Neste relato inicial, permita-me inteirá-la sobre as particularidades desta estranha língua. Primeiramente, não sabemos ao certo se o idioma se utiliza de palavras como blocos centrais de discurso. Sinto-me pessoalmente inclinado a concordar com a parcela da tripulação que defende a teoria de que o idioma nativo é “desvernaculado”; os argumentos são contundentes – por exemplo, embora nosso Oficial Arqueólogo tenha encontrado evidências de que o alfabeto utilizado na proto-escrita local seja o latino, não temos dados significativos quanto ao uso de “espaço” entre os demais caracterers. Algumas instâncias que comprovam esta hipótese:

·         Schwangerschaftverhütungsmittel: Pílula contraceptiva.
·         Rindfleischetikettierungsüberwachungsaufgabenübertragungsgesetz: Lei de rotulagem de carne.

Outro detalhe interessante sobre o dialeto: Esta retrógrada cultura atém-se ainda a costumes antiquados de linguagem, como o trema. Também utilizam-se de grunhidos impossíveis de serem reproduzidos por qualquer estrangeiro civilizado, como o fonema “rrrrrrrr” de fundo de garganta – característica que nosso Oficial Biólogo compara ao som característico emitido por algumas aves silvestres como meio de identificar facilmente outros indivíduos da mesma espécie. Por conta disso, uma pequena facção da tripulação defende a teoria de que os Dóitxe não são mamíferos por completo, descendendo ao invés disso de uma linhagem de híbridos entre primatas e pássaros pré-históricos. Reforço a importância que esta implicação traria à nossa expedição, Vossa Alteza: Podemos estar um passo mais próximos do Elo Perdido.

Concluo este documento inicial com dois apelos à Vossa compaixão: Em primeiro lugar, é de fundamental importância humanitária que mais fundos sejam destinados ao Projeto Dóitxe-lândia. Nossa condição favorecida enquanto “nação moderna” nos impinge a responsabilidade de trazer a povos sub-desenvolvidos – como os Dóitxes – as facilidades do século vinte e um. Pessoalmente, considero inaceitável permitir que os habitantes desta pobre colônia perdurem imersos na obscuridade do isolamento cultural que seu complexo idioma implica. Esta talvez seja nossa maior motivação para perdurar em nosso objetivo de colonizar Dóitxe-lândia: Exterminar o idioma local por completo e substituí-lo pelo Português (salve, salve!).

Em segundo lugar, mas não menos importante: Solicito realocação, com urgência, de um linguista para nosso contingente. É com extremo pesar que comunico que nosso Oficial Linguista pereceu honradamente em serviço, vítima de uma parada cardiorrespiratória após sete noites em claro tentando decifrar um criptograma local [Nota do capitão: “Das Buch ist auf dem Tisch”. Seus esforços foram pagos em seu leito de morte com a tradução desta críptica expressão, em seus últimos suspiros, para “O livro está sobre a mesa”]. Enviarei a documentação necessária para requerimento de pessoal em anexo a este documento.

Sem mais no momento,
[Capitão Fabio Piva, Comandante Geral e co-fundador do Projeto Dóitxe-lândia]



sexta-feira, 6 de julho de 2012

Caixa de Pandora

"Não abra".

Tá lá, claro e transparente. Escrito em vermelho em uma etiquetinha branca por algum profeta cego desses tantos. Ali, tá vendo? Na tampa. Ah... a tampa. Bonitinha, a tampa, né? Será que abre? Opa, abre -- nem tranca tem. Tá só fechadinha, assim, como quem não quer nada. Mas tem a tal etiquetinha e... O que tava escrito mesmo? Ah, sim, isso --

"Não abra".

E aí você levanta a tampa. Levanta a tampa e se choca. Se choca e resmunga. Resmunga e culpa Deus e o mundo porque ninguém te avisou, porque era uma cilada, porque, porque... Porque você ignorou o aviso, capiau -- e só. Mas o fato é que você fez apenas o que foi projetado para fazer.  Porque ser humano é um bicho burro por design, geneticamente programado com algum cromossomo falho que o faz naturalmente incapaz de processar o significado dos caracteres "N", "Ã" e "O" concatenados. Ou talvez até tenha a tal habilidade -- só não a exercita com frequência. Porque é curioso e, sendo curioso, quer saber o que tem dentro de toda e qualquer caixa. Mesmo que não seja capaz de encarar o que tem ali dentro. Mesmo que a caixa não seja dele. 

Mas a história não termina aí: Você sempre resolve voltar atrás e fechar a tampa. Só que fechar a tampa não te faz esquecer o que você já viu lá dentro; já foi. Você está mudado, irremediavelmente mudado, mesmo que seja só de um sujeito que não sabia o que tinha dentro da caixa para um sujeito que agora sabe o que tem dentro da caixa. Mas conhecimento nunca muda a gente para pior, né? Enriquece a pessoa, e tal, e tal. Se você acredita nisso, pare para pensar sobre como você era feliz quando ainda achava que Papai Noel existia, ou quando achava que a coisa mais difícil do mundo era a prova de Matemática da terceira série. Você não tinha que se preocupar com passar na entevista de emprego, com IPTU, com IPVA, com IPQP, com seguro, com abastecer o carro, com ter sucesso na carreira, com ter sucesso pessoal, com ter sucesso na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Pois é.


Mas convenhamos -- a culpa não é sua, que abriu a caixa (
nunca é). A culpa é da etiqueta. Não, melhor: A culpa é do profeta cego que escreveu a etiqueta. Ele não foi claro na mensagem, não enfatizou o suficiente. Pensando bem, agora, me atrevo a dizer que foi até mal intencionado -- deixando uma mensagem assim... tão ambígua, tão nebulosa. "Não abra" -- sacanagem deixar uma mensagem besta dessas. Ele não deveria nem ter usado uma "etiqueta", pra começar -- deveria ter usado um letreiro piscante em neon. Isso! Se quisesse mesmo ajudar exploradores desavisados, teria usado neon. Mas usou etiqueta. Então, a culpa é, obviamente, do profeta. 

"
Não abra."
(pisca)
"NÃO ABRA..."
(pisca)
"NÃO ABRA, PORRA!
(pisca)
(repete)

Quem abriria uma caixa com letreiro de neon? Ninguém, claro. Mas não tinha neon e, por isso, você foi lá e abriu. Não faz sentido se arrepender agora -- a gente pega o profeta um dia desses. Por agora, só resta dizer "tchau" para a ignorância confortável pré-caixa e se habituar à sua nova realidade pós-caixa. Sabendo o que não devia, o que não era para saber. Mas pelo menos você abriu a caixa -- melhor assim. Acho.